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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 9 

OPRESSÃO E VIOLÊNCIA EM NOTAS DE MANFREDO RANGEL, REPÓRTER (A RESPEITO DE KRAMER), DE SÉRGIO SANT'ANNA

Carlos Vinicius Veneziani dos Santos1

Resumo: O trabalho pretende refletir sobre a relação entre o livro de contos Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), de Sérgio Sant'Anna e o contexto histórico de sua produção (o período da ditadura militar brasileira), enfatizando a presença de uma crítica ao autoritarismo e à opressão do indivíduo no corpo da obra.
Palavras-chave: Opressão, violência, Sérgio Sant'Anna, ditadura, militarismo, conto, literatura brasileira, literatura contemporânea, autoritarismo.
Abstract: This paper intends to discuss the relation between Sérgio Sant'Anna's book Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) and the historical context (Brazilian military dictatorial period) in wich it was produced, emphasizing criticism of authoritarianism and opression against individuals.
Keywords: Opression, violence, Sérgio Sant'Anna, dictatorship, militarism, novel, Brazilian literature, contemporary literature, authoritarianism.

O livro Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) , de Sérgio Sant'Anna, foi escrito em 1973, em pleno governo Médici, reconhecido como o mais agressivo e violento do período militar. Seus dezessete contos, de temas variados, são mais curtos e mais diferenciados entre si que os do livro anterior de seu autor, O sobrevivente; a maioria deles é marcada por uma disposição melancólica por parte das personagens, associada à inadaptação destas ao sistema social em que vivem. A marca mais contundente dessa inadaptação é a presença da violência na relação entre as personagens e seu ambiente, que se manifesta tanto por meio da ação agressiva quanto por intermédio da resignação depressiva. Num ambiente político e social de repressão estatal, como o do regime militar brasileiro, a tensão entre o indivíduo e a sociedade revela-se ainda mais aguda, e as figurações da violência sob forma de autoritarismo e opressão, na literatura de ficção, remetem ao debate sobre essa tensão.
Sérgio Sant'Anna, em Notas, constrói uma escrita em que há, tanto do ponto de vista da temática quanto da estrutura formal, marcas da experiência histórica do autoritarismo presente na sociedade por ocasião do regime militar. A noção de autoritarismo, com a qual definimos a ação política do período histórico referido, é subsidiária das reflexões de Florestan Fernandes Jr. em Apontamentos sobre a "Teoria do Autoritarismo" . O comportamento autoritário se caracterizaria por uma forte tendência de efetivar o exercício do poder através de relações de dominação (FERNANDES, 1979, p. 4). O regime militar (uma ditadura de Estado que se estende da deposição de Jango, em 1964, à posse de José Sarney, eleito pelo Colégio Eleitoral, em 1985) teria se caracterizado por essa tendência, na medida em que reprimiu violentamente sua oposição, limitou bruscamente as liberdades de expressão e pensamento e restringiu direitos políticos. Em complemento à essa idéia, entendemos a opressão como condição em que o exercício de poder sobre um indivíduo provoca danos à sua integridade física, moral ou psicológica.
Em 1973 as reações da esquerda ao regime já haviam sido sufocadas a militância de oposição vivia um clima de terror. Os dez anos que precederam o lançamento do livro que será aqui analisado foram um período de fechamento autoritário sem precedentes na história política do Brasil2. Desarticuladas e com graves erros de avaliação, as esquerdas foram liqüidadas no período, não conseguindo nem enfrentar a ditadura nem mobilizar a população para que a enfrentasse (com o agravante da expansão econômica, o "milagre" de 68 a 73, período em que a economia brasileira apresentou notáveis taxas de crescimento, e que se tornou alicerce da propaganda da ditadura junto à opinião pública).
O sentimento de impotência diante das práticas autoritárias e o trauma da agressão violenta estão presentes de forma evidente em Notas. No conto que dá título ao livro, os problemas relacionados às práticas políticas do militarismo transparecem como elementos do enredo, cujo fio condutor principal é, justamente, a posição do indivíduo diante da violência dessas práticas. Nesse mesmo conto e em outros dois que compõem o livro (Pelotão e God Save the King), a construção da estrutura narrativa dialoga com o impacto da voz autoritária, que é, nos dois últimos, artificiosamente deslocada para o foco da enunciação. A voz do oprimido em relação ao poder repressor, por sua vez, ganha contornos nítidos em O 58, conto que tematiza a vida no cárcere. Finalmente, a opressão do indivíduo, tanto em relação às instituições quanto em relação à impossibilidade de transformação do seu quotidiano, aparece na grande maioria dos contos do livro, remetendo a um sentimento de melancolia e incapacidade de constituição do sujeito diante da vida social.
O conto Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) é o que media com mais contundência e de forma mais incisiva a ação repressora do regime militar. O texto trata de um repórter que acompanha a trajetória do político barriga-verde Kurt Kramer Emmanuel, um populista sem grandes propostas para o país, mas com grandes ambições políticas. Manfredo Rangel o conhece no saguão de um aeroporto, impressiona-se com sua figura e passa a acompanhar sua trajetória. Percebe não só sua fragilidade intelectual, como também sua disposição política irrefreável. Deputado com grande popularidade e chances de concorrer à presidência da República numa eventual eleição com candidaturas civis, Kramer terá problemas com o Serviço de Informações do governo, que, a princípio, permite sua ascensão enquanto não o considera uma ameaça. No entanto, mudanças no discurso do deputado (incitações a uma liberdade mais ampla) provocarão sua prisão, da qual retorna transtornado, mais ousado nas afirmações e amedrontado por sentir-se perseguido. Levando adiante sua campanha para presidência, no lançamento de sua candidatura no Recife, é surpreendido por uma insurreição popular insuflada por homens do governo, e morto no palanque.
A violência praticada no texto contra o deputado é aquela que se tornou praxe no Brasil durante o período de repressão da ditadura militar3. Seqüestro, pressão psicológica e assassinato dizimam Kramer, e são relatados por Rangel em suas anotações. Kramer apresenta os sinais de vitimização dessa violência, tanto fisicamente quanto psicologicamente, e assume a condição de oprimido, apesar da privilegiada situação social. O agressor é desindividualizado e privado de uma corporificação, mas é facilmente identificado como o Estado autoritário, e sua imagem é construída a partir de suas práticas. A vida particular de Kramer desestabiliza-se a partir do assédio a sua vida pública, mas, como a narração não nos fornece os bastidores da política governamental, acabamos por absorver os acontecimentos a partir da influência que têm na psicologia da vítima.
Do ponto de vista estrutural, o conto se constitui de uma série de anotações cronologicamente coordenadas do repórter Rangel, o que faz com que sejam percebidas no universo ficcional como informações não elaboradas e, em conseqüência, mais autênticas. O reconhecimento dessa característica é explicitado pelo narrador: "Eu leio estas notas contraditórias e fragmentárias e elas me parecem mais ficcionais do que o esboço de um romance (que talvez eu venha a escrever) ". (SANT'ANNA, 1997, p. 166)
A narração em primeira pessoa assume, assim, caráter precário, pelo fato de estar subordinada ao ponto-de-vista do narrador-personagem, o que conduz a um questionamento da imparcialidade da visão apresentada. Esse questionamento também é explicitado pela personagem do repórter sob a forma de dilema ético:
Mas eu fico tentando recordar o rosto, os gestos, as palavras, a pessoa total de Kramer. E penso, também, que chegara a ter alguma simpatia por ele e todas as suas contradições; sua incessante busca de si mesmo e de um destino. E penso, sobretudo, que ele me pediu que, como seu biógrafo e testemunha, o justificasse.
Existe, porém, antes de tudo, a consciência (deformação?) profissional. E um bom repórter não toma partido. Um bom repórter apenas relata. (SANT'ANNA, Contos e novelas reunidos, 1997, p. 166)
Do ponto de vista do encadeamento do texto, a trama é uma corajosa afronta ao militarismo, abordando questões cruciais, como o trabalho do Serviço de Informações, o reconhecimento da manutenção do poder por parte de alguns grupos, a tolerância a uma candidatura civil de fachada, a relação submissa do governo com Washington, as prisões arbitrárias, a censura às informações.
A personagem Kramer, no texto, é humanizada pela visão do repórter Rangel, e, como já citado, vitimizada pelo militarismo, através da prisão e da pressão psicológica a que é submetida. Embora seus discursos se constituam de assertivas genéricas, inofensivas e, em sua grande parte, irrelevantes, a personagem Kramer representa perigo para a ditadura militar, mesmo não podendo de forma alguma ser associada à esquerda ou a movimentos de resistência. O perigo reside em seu populismo, inconveniente para os padrões autoritários demandados pelos grupos poderosos. O narrador demonstra-se consciente dessa inconveniência de Kramer, que advém de sua instabilidade emocional e, em última análise, de sua condição humana intensa e contraditória, com a qual acaba por se identificar. Temos, portanto, um narrador-personagem que encontra problemas na constituição de sua objetividade e que se coloca do lado de uma vítima do regime opressor. Essa opção se reflete na constituição narrativa do texto, fragmentária e lacunar.
O conto O Pelotão, por sua vez, estrutura-se através de um foco narrativo absolutamente impessoal: a narração em terceira pessoa é predominantemente descritiva, o narrador é onisciente e as frases são repetições constantes da mesma estrutura gramatical (assertivas simples, diretas e explícitas), simulando objetividade absoluta e obsessão pela ordem, características do espaço que ambienta o enredo. Dividido em duas partes (descrição do cotidiano do pelotão e execução de um prisioneiro), o conto apresenta o fuzilamento de um cidadão como fato corriqueiro e cotidiano para os soldados, que o encaram como parte de seu trabalho. A forma e o conteúdo se complementam: o Pelotão, coletivo dos soldados tomado como personagem unitária, tem ressaltadas, a todo momento e de forma elogiosa, sua infalibilidade e sua disciplina. Ao distanciamento do narrador, no conto, corresponde o distanciamento necessário à precisão fria na execução de um prisioneiro, no caso um professor. Essa frieza, aliada à ausência de compaixão e à execução maquinal e calculada, opõe-se a qualquer aspecto de humanização das figuras que participam do conto. A narração dialoga com o que há de necessariamente desumano nas execuções, produzindo um ponto de vista calcado na observação sem julgamentos nem juízos sobre os fatos; o estranhamento provocado no leitor vem da negação, por parte da voz que narra os acontecimentos, da dramaticidade e pungência da situação. Nesse caso, portanto, o narrador, por não questionar a dimensão do que observa e não se manifestar diante disso, associa-se à posição do opressor, do Pelotão e do sargento: tudo serve a um propósito de contenção das emoções e rigidez disciplinar.
Naturalizando a violência da pena de morte ao diluir esse drama entre as atribuições cotidianas do grupo (diluição reforçada pelo efeito da repetição constante das estruturas sintáticas), o conto expõe a necessidade de supressão de qualquer juízo crítico minimamente humanitário, solidário ou questionador para a aplicação de semelhante punição. Dessa forma, questiona o autoritarismo do sistema militar, e a desumanização que dele decorre.
A rigor, apenas Notas e O pelotão abordam questões explicitamente relacionadas ao militarismo. Entretanto, há mais dois contos que trazem elementos importantes para a análise da crítica ao autoritarismo efetuada por Sérgio Sant'Anna, por tematizarem as relações de poder dentro das instituições sociais.
Explorando uma posição distanciada do narrador, God save the King é praticamente um monólogo de um professor numa escola, discorrendo de forma desordenada e despropositada sobre vários assuntos de várias disciplinas. Geografia, religião, história, matemática, todas as matérias se misturam de ao bel-prazer da voz autoritária, numa fala que em nenhum momento enuncia ou indica qualquer reflexão sobre si própria ou qualquer possibilidade de interlocução.
Do ponto de vista da estrutura do texto, o narrador quase se retira de cena, apontando apenas a autoria das falas e as ações dos personagens. As unidades da fala são divididas em parágrafos que indicam a mudança de tópico por parte do falante, e não a mudança de turno no diálogo. A única intervenção dos alunos, em resposta a um questionamento do professor, é inibida com um grito solicitando silêncio4, e o monólogo se estende até as últimas linhas, quando os estudantes são incitados a repetirem palavras de ordem em três línguas (a frase que dá título ao texto). Nesse caso, a ausência do narrador, não por sua descrição distanciada ou constatativa, mas por seu quase total apagamento diante da fala do professor, é um recurso que ressalta o autoritarismo da ação dessa personagem, de seu monopólio do discurso e de sua inquestionabilidade.
O espaço da fala, em God Save The King, é dominado por um único interlocutor. Apesar disso, não há violência física ou moral, mesmo porque não há espaço ou necessidade dela: uma vez que toda a pauta disponível é ocupada por uma única voz, fica patente que é concedido ao professor todo o poder sobre essa pauta. Não há, em momento algum, indicação de quaisquer sentimentos ou reações dos alunos a esse monopólio, excetuando-se pequenas intervenções do narrador e dos alunos. A impessoalidade e ausência de juízo do narrador nos mostram, portanto, um sistema onde a autoridade é muito grande e pouco questionável. Há, evidentemente, uma crítica à instituição escolar e seus métodos, e à ausência de questionamento deles decorrente.
O conto O 58 trata da relação entre detentos em uma penitenciária. O detento 125 explica ao 237 as coisas que aprendeu com o 58, que por sua vez aprendera a se comportar com o 34, num ciclo interminável de construções de processos de adaptação. O discurso do 125 é carregado de reflexões sobre a própria vida, sobre os acontecimentos que o levaram à cadeia, sobre seus sentimentos e sobre a tentativa de adequação ao sistema em que vive. A partir dessa matriz ficcional, o texto aborda a vida no cárcere, a política de boa vizinhança, as relações com carcereiros e outros presos, a necessidade de adaptação a um ambiente inóspito para sobreviver. É notório o alto grau de despersonalização das personagens, que são identificadas por números, não por seus nomes, e sofrem vários tipos de maus-tratos: comida ruim, solitária, humilhações impingidas pelo carcereiro, surras. A violência é associada a um opressor indeterminado (apontado pelo pronome "eles"), sem identidade explicitamente definida. As personagens oprimidas são criminosos comuns, que, através do diálogo em tom confessional (no qual a escuta tem valor terapêutico) e da autocrítica, atingem um patamar de reflexão sobre a própria vida que lhes fornece a maturidade suficiente para a subsistência dentro do sistema carcerário. A narração em primeira pessoa acentua o tom confessional e autocrítico, trazendo o leitor para dentro da perspectiva do encarcerado. Estruturado circularmente, o conto mostra a vida na prisão como um constante amadurecimento diante da opressão. A idéia central é a de que o aprendizado sempre se dá individualmente, embora os presos cheguem às mesmas conclusões e se possa sempre dialogar com detentos mais velhos, que já detêm essa tarimba. A violência que aparece no conto parece contar com duas motivações básicas: quando cometida fora da cadeia, por motivações individuais idiossincráticas; quando dentro da cadeia, por reação ao tédio, ao sofrimento e aos maus tratos. A violência cometida pelo sistema penitenciário contra os presos (percebida com indignação resignada pelo narrador) remete às estruturas autoritárias das prisões e dos regimes fechados, que acobertam os abusos contra detentos. Dentro do conto, o espaço coletivo determina, por meio das imposições, a transformação do espaço interior das personagens. Nesse sentido, é efetuada uma reflexão particular sobre a vida pública destas fora da cadeia, comparada à vida que levam dentro dela.
God save the King e O 58 são contos em que o autoritarismo aparece como fenômeno institucional, mas associado ao autoritarismo do Estado em função de duas características centrais: a impossibilidade de contestação do sistema e a ação repressora das figuras que representam o poder. Nos quatro contos citados anteriormente, é possível relacionar de forma clara o poder autoritário à condição de opressão em que estão as personagens que sofrem a ação desse poder. Os outros contos do livro enfocam de forma mais subjetiva a vida das personagens oprimidas, e, embora façam remissões à presença do opressor, em maior ou menor grau, nem sempre este é identificado como sendo uma instituição.
Três contos tematizam a vida em casal (O círculo, Romeu e Julieta e Marieta e Ferdinando). Neles, é possível afirmar que há uma concepção em que as expectativas das personagens são frustradas pelo decorrer dos acontecimentos. Por outro lado, transparece a idéia de que a agressividade impulsiva, enquanto inclinação das personagens nesses contos, é constitutiva do cotidiano matrimonial das mesmas. O casamento é visto como uma instituição social em desacordo com as perspectivas individuais das personagens, por vezes atuando como um fator de desarticulação da individualidade.
Os contos que se associam a uma reflexão sobre o papel do escritor e do artista (Dois cadáveres para uma loura, A morte do pintor surrealista, O espetáculo não pode parar e Uma visita, domingo à tarde, ao museu) têm como ponto comum tratarem de questões relacionadas à arte e a seus limites e particularidades. A engenhosidade de sua construção sobrepõe-se ao enredo na medida em que reforça, justamente, a reflexão estética que engendram. As personagens são sujeitos em conflito com essas questões, ou, no caso de Dois cadáveres para uma loura, problematizados pelas mesmas. Não se verifica nesses contos uma disposição agressiva comum às suas personagens; a relação problematizada parece não ser a do sujeito com o meio, mas, sim, a do sujeito com sua percepção do mundo e da arte.
Já os contos associados a indivíduos em situação de opressão, trauma ou melancolia caracterizam-se pela incapacidade das personagens principais de compreenderem e interpretarem a realidade em que se situam, que lhes parece lacunar, fragmentária ou incoerente. Alguns contos trazem reflexos dessa incapacidade: em Sombras e O dia em que não matei Bertrand a lógica causal das ações das personagens oculta-se numa inquietude interior, percebida a partir do ponto de vista das mesmas. A inclinação agressiva das personagens está associada à frustração cotidiana em Pela janela, O dia em que não matei Bertrand, Sombras, Composição II, e a fatores traumáticos em No último minuto, sendo que Composição I parece conjugar ambos os fatores. De qualquer forma, em todos os contos desse grupo, a realidade é percebida como problemática e incômoda, e as soluções de enredo não parecem apontar para uma aprendizagem ou superação desse incômodo, mas sim para uma noção de que o sofrimento dura indefinidamente. Concentraremos nossa análise nesses contos.
O conto O dia em que não matei Bertrand, sendo o que mais se aproxima dos contos associados ao autoritarismo institucional, é narrado inteiramente em primeira pessoa, e mostra um cidadão revoltado com seu chefe a ponto de desejar seu assassinato. O protagonista tem comportamento obsessivo, movido pelo ódio a Bertrand, seu superior e figura de autoridade e poder dentro da empresa. Guiado pelo desejo da personagem, o leitor acompanha toda a evolução psicológica da trama para, perto da consumação do crime, perceber que ela existe apenas dentro da mente da mesma. A narração em primeira pessoa tem, nesse caso, função relativizadora da percepção da realidade: a história contada é a que se passa na mente do empregado, não a história real. Quando a fantasia é desfeita e a personagem percebe que não vai matar Bertrand, retorna à rotina de seu trabalho, que a humilha e desvaloriza. Nesse caso, há uma reação impulsiva subjetiva a uma figura de autoridade percebida como opressora, e a narração coloca-se ao lado do oprimido, de forma a questionar sua própria percepção.
A personagem principal descreve (imagina) a forma como cometeria o assassinato de seu superior. A descrição intensa mostra o quanto a figura de Bertrand o desagrada. As motivações dessa destrutividade estão associadas, no conto, às exigências desse chefe e às reprovações que faz ao comportamento e à imagem pessoal do protagonista. O final do conto e algumas frases indicam que a insatisfação associa-se também ao ambiente de trabalho e suas exigências. A fixação do pensamento no assassinato, além de ser uma reação tardia e cheia de rancor acumulado às repreensões do superior, é uma forma da imaginação reagir à monotonia e mesmice do ambiente em questão. Do ponto de vista da estrutura do texto, ressalta-se a engenhosa utilização da expressão "tenho certeza"5 , que, ironicamente, retira a certeza que o leitor tem da ação da personagem, indicando que ela está fantasiando. O resultado ficcional é a sensação de fantasia compensatória para a agressividade reprimida. A resignação, após a descoberta do desvario mental do trabalhador, atua como ápice psicológico da frustração, associada, por parte da personagem, à percepção da irrelevância de sua existência.
O conto Pela janela traz uma personagem com extrema dificuldade em lidar com a preferência da mãe por seu irmão, preferência vista como injusta, dada sua opção de cuidar da progenitora, enquanto o outro se ausenta longamente e parece mais preocupado com sua vida pessoal. O maior sucesso profissional do irmão e a tendência da mãe em fazer comparações em favor deste fazem com que a personagem principal realize intervenções agressivas, embora por vezes coladas à resignação com a situação. No final do texto, ao mentir para a mãe para provocar seu sofrimento, alimentando a idéia de que alguém semelhante ao irmão poderia ter morrido num acidente, a personagem satisfaz-se ao realizar um desejo contido, reprimido pelo reconhecimento de sua maldade. O conto aponta para uma situação desconfortável, frustrante e dolorosa, que se prolonga indefinidamente e não tem perspectiva de desfecho favorável, o que provoca momentos de degradação, como o da mentira.
O conto No último minuto é construído a partir da sofrida percepção de um goleiro que, após engolir um frango no último minuto de jogo de uma decisão de campeonato, rememora o lance e o que sentiu, revendo a imagem repetidas vezes no videoteipe da televisão. A situação carrega os aspectos da dor e da surpresa: a falha inesperada associa-se à frustração absoluta de uma série de expectativas alimentadas pela iminência da conquista do título. Deixam de existir a possibilidade de servir a seleção brasileira, a associação de seu nome a grandes defesas, o reconhecimento pelo bom campeonato. Recusando-se a carregar a culpa solitariamente, ele a reivindica para seus companheiros de clube, que também falharam, mas cujas falhas não serão lembradas. O texto recupera constantemente, através da alusão aos noticiários de TV, a cena da falha do goleiro. Essa repetição constante associa-se à característica traumática da situação, que não tem retorno possível, é dolorosa e exige tempo para ser assimilada. Há, no caso, uma frustração gigantesca de expectativas, de uma forma muito cruel, pois elas estavam prestes a se realizar.
O conto Composição traz quatro personagens em posições muito bem estabelecidas. Numa mesa de jantar, onde regras desnecessárias são índice para medir a autoridade patriarcal, o pai exerce seu poder sobre os filhos através da violência. O protagonista é um adolescente, aprendendo a viver com seus medos e inseguranças; Lia é a irmã, amiga e cúmplice do menino; ele a admira e ama; há ainda o pai, autoritário e temido, que é uma figura aparentemente tradicionalista, e a mãe, omissa e submissa ao marido, também enquadrada no paternalismo tradicional. A cena central do enredo é aquela em que o pai impede que Lia pegue batatas fritas usando as mãos, sem um garfo ou pegador apropriado. A brutalidade com que isso é feito é sentida como extrema e despropositada. Lia reage e o enfrenta, mantendo-se durante algum tempo firme na decisão de levar a cabo sua ação, mas é derrotada no embate de forças, pelo maior poder físico do adversário. O irmão apóia Lia, mas não tem a coragem desta, e abafa sua vontade de ajudá-la numa posição de recolhimento e autocrítica. Ele a admira, mas sente-se impossibilitado de revelar seus sentimentos naquele momento. As regras estabelecidas para o jantar, transgredidas por Lia, são consideradas arbitrárias pelas crianças, e a ação do pai associa-se a uma noção de violência pedagógica, visto ser ele conservador e alienado politicamente, e, nessa medida, ideologicamente alinhado ao autoritarismo da época. O misto de medo e revolta nas crianças faz com que se aproximem ainda mais.
Do ponto de vista da estrutura, o conto funciona como um diálogo de duas histórias intercaladas. A primeira é a do enfrentamento, já citada. A segunda é que acontece durante a noite, após o incidente, quando os irmãos têm um encontro de sensualidade incestuosa. Essa história se desenvolve de forma paralela à primeira, com alternância entre trechos de ambas, distinguidos graficamente pelo uso do itálico em oposição ao da fonte padrão. As noções de proibição e de tabu são centrais, pois há uma relação entre o desafio ao pai nas duas histórias. As personagens infantis do conto são criaturas insatisfeitas com o sistema patriarcal da família, mas reprimidas em sua expressão dessa insatisfação. Unidas pelo medo, pela admiração mútuas e pela motivação transgressora, procuram, na aproximação dos corpos, uma válvula de escape para a repressão física na qual estão envolvidas. Narrado pela personagem do menino, o conto é de rememoração e mostra a dificuldade de reconstrução coerente das cenas e do momento no tempo. O relato revela melancolia e uma visão negativa do passado, uma carência de construção de sentidos.
O conto Composição II assemelha-se em estrutura ao conto Composição I, na medida em que é construído com base em duas seqüências que se inter-relacionam e dialogam entre si. Como visto, o conto Composição I tem duas histórias que correm paralelamente, e que são complementares, uma vez que aquela que está em itálico é imediatamente posterior àquela que está em letras padrão. Já Composição II traz duas descrições, uma do quarto de uma personagem indeterminada, outra do quarto que aparece na capa do disco que essa pessoa põe para rodar. A letra da música que roda no toca-discos, o ambiente descrito na capa do disco e o quarto da pessoa em sua desordem parecem expressar, em conjunto, certo tipo de destrutividade. Há uma referência ao efeito de repetição constante: alguém que aparece falando de algo que mostra alguém falando de algo, e assim sucessivamente6. Essa referência parece ser crítica e estar associada ao vazio da arte de consumo imediato. Carente de informações mais consistentes para uma construção efetiva da personagem, o conto remete, na verdade, a uma série de elementos que, sobrepostos, apontam para uma sensação de incompletude e vazio de sentido. A última frase do texto é uma referência agressiva a esse vazio, e dá a idéia de um enfado generalizado, característica da depressão: "Estou farto de tudo e vou tomar o ônibus vinte e sete e viajar para outra galáxia."
O conto Sombras é protagonizado por um cidadão de classe baixa, de quem não sabemos o nome, morador de favela, habituado às privações e problemas característicos da pobreza no Brasil. Embora não haja mudança nas atividades rotineiras e cotidianas, o texto constrói situações em que a personagem expressa sua inclinação agressiva. Há dois momentos distintos em que isso acontece: no retorno a sua casa na favela, ele vê urubus devorando um cachorro morto, e atira-lhes pedras; durante sua estadia em casa, sua relação com a mulher é hostil e ríspida, sem qualquer demonstração de afeto. Sua disposição à agressão parece estar ligada a sua condição social e ao convívio diário com situações desumanas, que se tornam naturais em seu cotidiano. Sua fixação em atingir o urubu com a pedra aponta para uma retomada do clima presente em Composição I e II: o enfado com a vida e com a falta de um sentido mínimo para a existência.
A análise dos contos de Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) oferece elementos para pensarmos as noções de autoritarismo e opressão relacionadas ao cotidiano das personagens e das instituições com as quais se relacionam. A opressão aparece associada ao regime ditatorial em Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) (o conto) e O pelotão; associada a instituições públicas em O 58 e God Save the King. A presença da disposição autoritária nesses contos remete à situação histórica do Brasil à época do lançamento do livro.
Entretanto, a opressão, em vários outros contos, se dissocia das figuras institucionais e aparece como elemento do cotidiano das personagens, na relação que essas têm entre si e com a sociedade em que vivem. Essa opressão pode estar na ação patriarcal do pai de família (Composição I), na forma como a imprensa lida com as falhas do indivíduo (No último minuto), na injustiça tendenciosa do discurso da figura materna (Pela Janela), no ódio à autoridade e à figura do superior hierárquico da empresa (O dia em que não matei Bertrand), na necessidade de se submeter às rotinas do casamento enquanto instituição (contos relacionados aos conflitos amorosos).
Essa grande variedade de manifestações opressivas mediadas pela ficção literária da obra de Sant'Anna nos impede de extrair do conjunto das análises qualquer suposta visão unívoca ou definitiva a respeito da violência. Os elementos apontados nos contos, no entanto, permitem entrever três possibilidades distintas de interpretação: a primeira consideraria a violência praticada e sofrida pelo indivíduo como decorrência particular da ação de uma estrutura governamental opressora, intensificada em sua ação repressiva pelo regime ditatorial; a segunda consideraria a violência como decorrente da necessidade de adequação do indivíduo a instituições sociais que revelariam disposições autoritárias e opressoras; a terceira consideraria a violência resultante do conflito entre disposições agressivas individuais e a opressão inerente à necessidade de adequação às normas e convenções do sistema social. As três possibilidades de leitura apontadas remetem à relação estabelecida, nos contos, entre violência e opressão do indivíduo. A análise formal de Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer), quando considerado o conjunto total dos contos, contribui para reforçar essa constatação: o incômodo da condição fragilizada do sujeito revela-se na fragmentação da estrutura da obra, constituída de dezessete textos que não formam uma unidade conceitual evidente, e na fragmentação interna dos contos (notadamente a do conto que dá título ao livro), que aponta para a impossibilidade de que as personagens resolvam as contradições geradas em sua relação com o ambiente opressor em que estão inseridas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. W. Notas de literatura I. Tradução e apresentação: Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2003.
DIAS, A. M.; GLENADEL, P. (Org.). Estéticas da crueldade. Rio de Janeiro: Atlântica Editora, 2004.
FERNANDES, F. Apontamentos sobre a "teoria do autoritarismo". São Paulo: Editora Hucitec, 1979.
GORENDER, J. Combate nas trevas. 6a. edição. São Paulo: Editora Ática, 2003.
SANT'ANNA, S. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

1 Mestrando em Literatura Brasileira - USP
2 As informações que embasam a contextualização histórica que segue podem ser encontradas no livro de Jacob Gorender, Combate nas Trevas, citado na bibliografia.
3 Seria impossível, para as dimensões deste trabalho, apontar todas as influências do autoritarismo na cultura e organização social brasileiras a partir da instauração do regime militar em 1964. Algumas características, entretanto, devem ser ressaltadas, por constituírem um quadro geral histórico útil para a compreensão de questões recorrentes na literatura do período. Em primeiro lugar, a constituição do aparelho repressor, com a sistematização da tortura e do terrorismo contra-revolucionário. Em segundo lugar, a sistematização dos órgãos de informação, com a instauração de um clima de medo de delação, seja por traição, seja por tortura, seja por falha de organização das atividades dos movimentos de esquerda. Em terceiro lugar, a participação das Forças Armadas em atos de terrorismo contra civis, com objetivo de culpar os movimentos de resistência. Para maior detalhamento do processo, cf. referência da nota 2.
4 "(...) O homem andando de quatro: um macaco. Manifestando-se apenas através de grunhidos onomatopaicos: grr, argh, urf, ui, rrom. Já pensaram se um homem civilizado pudesse retornar à época das cavernas? Vocês conhecem, por exemplo, as histórias do Brucutu e do professor Papanatas?
- Conhecemos -responderam os alunos em uníssono, e começaram a comentar entre si as historinhas do Brucutu, numa algazarra tremenda.
- Silêncio - gritou o professor. - Continuemos a nossa aula. Sobre a pujança da palavra, tomemos, como exemplo, este trecho do grande Rui Barbosa: (...)." (SANT'ANNA, 1997, p. 141)
5 "Estou com uma arma nas mãos, tenho certeza, mãos que não tremem. Mas, incrivelmente, ele não parece ver o revólver. E também a mim." (SANT'ANNA, 1997, p. 117)
6 "(...) uma televisão, ligada, mostrando uma garota que anuncia, sorrindo, um aparelho de televisão igual àquele, e onde aparece ela própria, a garota sorridente, anunciando um televisor idêntico, com a imagem dela própria, a garota, anunciando o mesmo televisor e assim sucessivamente (...)". (SANT'ANNA, 1997, p. 89)
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