PRODUÇÃO LITERÁRIA: RUPTURA E TRANSFORMAÇÃO
João Luis Pereira Ourique
É comum a percepção,
através dos debates e discussões acadêmicas, questões levantadas
acerca do papel da literatura e da sua aproximação com outras
áreas do conhecimento, em especial atenção a história.
Mesmo apresentando suas defesas em prol do desenvolvimento
de um trabalho interdisciplinar, pesquisadores das duas áreas
ainda têm demonstrado preocupação maior em defenderem os territórios
ocupados por suas disciplinas, demonstrando uma preocupação distanciada
do objetivo de conjugar esforços para compreensão maior da sociedade
e dos seus mecanismos de inclusão e exclusão.
Mesmo enfatizando a união de esforços, também se deve entender
o papel a ser exercido individualmente, mas não hierarquizar,
definir ou demarcar limites entre este ou aquele ramo das ciências.
No caso específico da literatura e da história, entendidas
como parceiras naturais na busca de seus objetivos, existe uma
preocupação em dizer quem faz isto e quem faz aquilo, sem se preocupar
se este de fato é o melhor caminho para a construção do conhecimento
– preocupando-se mais com a disciplina e a afirmação de sua importância.
Valorizar não é uma situação de imposição, mas pode vir a ser
um espaço de distorção, no qual se podem ignorar importantes questões
por presunção ou por subestimação de determinada linha de pesquisa. As considerações apresentadas de que à história cabe contar com
os registros documentais e à literatura cabe apresentar as diversas
histórias não oficiais onde, muitas vezes, os fatos documentados
servem de pano de fundo para o enredo das personagens, parece
ser uma definição bem aceita, contudo, se se pensar a sociedade
como mais complexa que isso, talvez seja insuficiente essa atribuição
de papéis.
Considerando que a obra literária traz em si uma carga de formação
cultural do sujeito e que, na maioria das vezes, não é percebida
pelo autor ou pelo leitor e que os fatos e documentos históricos
pactuam com essa mesma formação cultural do indivíduo é que pode
se buscar uma aproximação de fato construtiva e integradora.
Nota-se que pesquisadores da área da literatura preocupam-se
em demasiado com a forma e a estrutura interna de um texto, sem
perceberem que texto também é contexto e como tal está inserido
em uma sociedade, ao passo de que a história, em muitos casos,
preocupa-se muito com os movimentos sociais em nível macro, sem,
contudo, especular todo o processo de formação cultural que acaba
por definir atitudes e comportamentos de um indivíduo ou grupo.
Literatura e história não devem buscar respostas para suas questões
unicamente na aplicação técnica, mas sim, aceitar que uma obra
ficcional e um documento histórico podem
ser, que tudo deve ser posto em dúvida e que interesses sempre
estarão por trás da história oficial ou do cânone literário.
Se a história deve questionar os documentos oficiais, a
literatura deve aceitar a incompletude da obra, pois somente assim
estará respeitando o autor enquanto ser inserido em uma sociedade,
falho como ela, ao mesmo tempo crítico e conservador.
Partindo do pressuposto de que a literatura, para fugir da concepção
da arte pela arte, é primeiro reflexão (a partir do processo de
formação cultural), depois representação da realidade (não se
constituindo documento, mas sendo importante para compreensão
de uma sociedade) para, novamente, ser objeto de reflexão no efeito
que exerce sobre o leitor, pode-se pensar que as críticas sociais,
o conservadorismo e/ou a resistência a regimes autoritários –
enquanto temas da obra literária – são, antes de mais nada, um
olhar sobre a sociedade humana.
Dessa forma, entende-se por que muitas obras são pretexto para
que ideologias sejam postas em prática.
Tanto governos autoritários de direita quanto de esquerda
se sustentam ou alcançam o poder com base em ideologias que são,
muitas vezes, inculcadas pela literatura enquanto veículo desses
ideais. Ao fazer uma relação entre a história do Brasil e sua constituição
sobre séculos de guerras, escravidão, tortura e assassinatos,
é que se pode ter uma dimensão do papel que a literatura exerceu:
ao mesmo tempo aliada e contestadora dos interesses dos grupos
dominantes.
Fazendo associações entre fatos históricos e obras literárias
é que se pode, se não afirmar, especular sobre as transformações
sociais vivenciadas pelo escritor e poeta enquanto indivíduo inserido
na sociedade. Não há condições de um indivíduo se alienar
completamente do mundo a sua volta para produzir sua obra, ele
estará pleno de traumas, recalque e revoltas, pois esse indivíduo
se desnuda na arte literária, mostrando mais do que aparenta ser,
ou seja, diz mais sobre si e sobre a realidade, só que de forma
velada e de difícil compreensão.
Esse deve ser o ponto chave da interdisciplinaridade a ser empregada
pelas ciências sociais (incluindo-se aí as artes e a literatura):
compreender a essência (e a existência) humana para, a partir
daí, externar uma visão crítica a todo um processo histórico estruturado
sobre ruínas de civilizações que não tiveram poder para se impor
ou resistir à dominação imposta.
Talvez assim a literatura possa contribuir para que a história
não precise se repetir na forma de dominação, mas sim de um desenvolvimento
social mais humano.
Novamente se faz necessário extrapolar o universo entre as disciplinas
e criar novas visões, pois se os regimes autoritários visam manter
o patamar das verdades absolutas sem questionamentos, rebaixando
o ser humano a categoria de objeto, de engrenagem da máquina social
sem vontade ou liberdade, qualquer manifestação que resgate o
valor humano, mesmo sem comprometimento político, questiona, e
pensamento e ação se completam na história que se renova.
Sabendo disso é que se pode ler um romance ou um poema como sendo
produto de uma formação cultural e ao mesmo tempo base para novas
reflexões. No caso do poema isso é ainda mais forte: o
poema transforma-se em poesia na sua completude com o leitor. Resistência, alienação, contestação, revolta,
conformismo, esquecimento são apenas alguns sentimentos que a
obra, digo, o indivíduo carrega em si. É,
portanto, necessário fugir do acomodamento e segurança das dimensões
limitadas que cada ciência usufrui para buscar novos horizontes. Quais? Talvez
ninguém saiba ao certo, o certo é que a discussão abre caminhos
até então intransponíveis e o futuro precisa de reflexão para
não ser construído sobre as ruínas do presente.
Considerando essa relação entre a literatura e a história, pode-se
levantar um questionamento sobre o momento de transformação vivido,
ou melhor, sobre as transformações que a sociedade vem vivenciando
e não tem encontrado respostas para os novos problemas oriundos
dessa nova “ordem” social. A fragmentação entre o conteúdo e a forma literária
nunca encontrou tamanho eco na própria sociedade, que se vê também
desestruturada e fragilizada.
Assim, o primeiro argumento em prol dessa ruptura é o de que a
produção literária vem atendendo à demanda constante de uma postura
crítica perante as relações humanas e sociais.
Apesar de estarem presentes as tensões oriundas da supremacia
de poder de determinadas minorias dominantes, que detêm
o poder (principalmente econômico e político), alicerçando-o e
justificando-se com o emprego da ideologia, verifica-se também
que existe uma oposição perante estas situações de dominação.
A visão otimista de que a sociedade está preparada para resistir
a essa imposição de valores ou, ao menos, fazer frente à propaganda
oficial das estruturas dominantes, é quase que utópica, no entanto,
a possibilidade existe, a reflexão pode ser objeto de preocupação
de cada vez mais pessoas, oportunizando, assim, a transformação
pretendida, na qual a autonomia possa ser um elemento presente
nas negociações sociais.
Dentro dessa perspectiva, se faz necessária a não absorção romântica
dos ideais de uma sociedade igualitária, una e coesa. Ao contrário, a autonomia deve ser sinônima de compreensão (ou o
quanto isso for possível) das diferenças entre as diversas culturas,
permitindo espaço para a reflexão sobre o real, sobre os conceitos
dogmáticos, na busca de um constante questionamento sobre o que
é verdade.
O caso do Brasil é muito interessante nessa visão
afirmativa da sociedade. A
ruptura evidenciada não encontra espaço dentro da visão positiva
brasileira, ou seja, enquanto os demais países Latino-Americanos
enfrentaram a violência e a perseguição atingindo, portanto, uma
consciência dos problemas vividos e da importância do posicionamento
e do engajamento (quer artístico ou político) como fatores
de resistência e de rejeição às práticas de dominação, a sociedade
brasileira ainda estava calcada em uma visão otimista e idealizada
de uma constituição histórica pacífica e harmônica.
Que violência ocorreu na história brasileira? Essa é uma pergunta que ainda está presente na boca daqueles que
defendem ou que estão alienados perante os problemas da sociedade. Que problemas? A sociedade brasileira e grande parte dos intelectuais e escritores
e poetas parece que não rompeu com esse estigma de felicidade
presente e reinante neste paraíso tropical.
Mais do que apresentar respostas, este pequeno relato visa questionar
aquilo que salta aos olhos, aquilo que está diariamente presente
nas casas e lares de milhares de pessoas e que elas mesmas não
são capazes de perceberem, ou por alienação ou por subordinação...
às leis, ao dinheiro, ao conforto e tantos outros poderes
constituídos pela sociedade ao longo de séculos de violência.
Esse hiato é que deve ser resolvido não apenas entre história
e literatura, mas evidenciar uma reflexão sobre o não-importismo
com o outro, com a ausência de postura crítica, com o apagamento
da arte, da literatura, da história...
Assim, uma postura perante o conceito de história deve ser adotada
visando estabelecer que estruturas estão sendo analisadas e definidas
como “verdade”. A observação
de Walter Benjamin de que existe uma apropriação de uma reminiscência,
ou seja, de uma lembrança idealizada e comprometida, não isenta
do compromisso pretendido pela ciência em sua matriz geradora:
de pactuar com os fatos e não com os interesses; sabe-se que isso
é muito difícil e quase impossível de superar, a não ser pela
constante revisão e questionamento, identificando, inclusive,
as estruturas que direcionaram determinado pensamento em determinada
época.E para que o pensamento crítico seja possível, para que
questionamentos sejam a chave para a reflexão é que se faz necessário
(e urgente) o emprego de certos procedimentos na busca do desvencilhamento
dos idealismos reificadores das práticas cotidianas de exclusão
e de imposição de valores. Um desses procedimentos, apontado por Reinaldo
Marques, consiste em investigar as conexões do poeta
e da poesia com a tarefa de construção da nacionalidade, a fim
de determinar de que modo um tal engajamento afeta os estatutos
do poeta e da poesia, alterando-lhes a concepção, os procedimentos
e enquadramentos enunciativos.George Steiner vai mais a fundo
nessa reflexão, apresentando uma preocupação com o próprio fazer
poético, criticando o escrever sob encomenda, sem profundidade
ou sentimento, relegando esse papel de inferioridade à poesia.
Para o poeta é melhor mutilar o seu próprio idioma do que conferir
dignidade ao desumano, seja por seu dom, seja por sua indiferença.
Se o jugo totalitário for tão eficaz a ponto de frustrar
todas as oportunidades de dnúncia, de sátira, então que o poeta
se extinga. (...) Se as palavras pronunciadas no meio urbano estão
impregnadas de selvageria e mentiras, nada fala mais alto do que
o poema não-escrito.
Tal abordagem pode servir perfeitamente para
essa problemática de exaltação nacionalista de cunho positivo
presente na sociedade brasileira, que deve ser rompida e transformada
– no que não se pode definir ou conceber.
A questão da identidade e da construção (convivência-aceitação)
da diferença evidencia uma preocupação com um
nacionalismo bastante perigoso, o mesmo que preocupava
Benjamin nos anos 20 e 30, para quem as estratégias alegóricas
de dissociação eram lúcidas também enquanto antídoto para aquela
resistência às alienações contemporâneas pela via de uma coesão
orgânica cujo solo é uma mitologia regressiva de tipo nacional,
mitologia cuja exacerbação desemboca no fascismo
Assim, diante de tais constatações de rejeição ao
diálogo entre a sociedade e mesmo entre áreas do saber tão conexas
e dependentes uma da outra dentro de uma visão que objetiva o
questionamento de mecanismos de dominação, cabe salientar a necessidade
imperiosa de falar, de cantar e de refletir sobre os temas que
são caros a essa mesma sociedade - cultura, verdade, identidade,
democracia - para identificar se são de fato aquilo que representam.
“ ‘Agora as Sereias têm uma arma ainda mais fatal do que suas
canções’, escreveu Kafka nas Parábolas, ‘ou seja, o silêncio.
E, embora por certo isso jamais tenha acontecido, ainda
assim é possível que alguém tenha escapado do canto das sereias;
mas de seu silêncio, certamente, jamais.’ ”Para deixar uma questão em aberto: será
que a literatura e a história e a própria sociedade organizada
e estruturada não estão se calando perante os problemas e as transformações
com o intuito de seduzirem por meio do apagamento e do
esquecimento a todas as minorias que não se enquadram na política
calcada na exclusão e na supressão de direitos?