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PRODUÇÃO LITERÁRIA: RUPTURA E TRANSFORMAÇÃO

João Luis Pereira Ourique [1]


É comum a percepção, através dos debates e discussões acadêmicas, questões levantadas acerca do papel da literatura e da sua aproximação com outras áreas do conhecimento, em especial atenção a história.  Mesmo apresentando suas defesas em prol do desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar, pesquisadores das duas áreas ainda têm demonstrado preocupação maior em defenderem os territórios ocupados por suas disciplinas, demonstrando uma preocupação distanciada do objetivo de conjugar esforços para compreensão maior da sociedade e dos seus mecanismos de inclusão e exclusão.

Mesmo enfatizando a união de esforços, também se deve entender o papel a ser exercido individualmente, mas não hierarquizar, definir ou demarcar limites entre este ou aquele ramo das ciências.  No caso específico da literatura e da história, entendidas como parceiras naturais na busca de seus objetivos, existe uma preocupação em dizer quem faz isto e quem faz aquilo, sem se preocupar se este de fato é o melhor caminho para a construção do conhecimento – preocupando-se mais com a disciplina e a afirmação de sua importância. 

Valorizar não é uma situação de imposição, mas pode vir a ser um espaço de distorção, no qual se podem ignorar importantes questões por presunção ou por subestimação de determinada linha de pesquisa.  As considerações apresentadas de que à história cabe contar com os registros documentais e à literatura cabe apresentar as diversas histórias não oficiais onde, muitas vezes, os fatos documentados servem de pano de fundo para o enredo das personagens, parece ser uma definição bem aceita, contudo, se se pensar a sociedade como mais complexa que isso, talvez seja insuficiente essa atribuição de papéis. 

Considerando que a obra literária traz em si uma carga de formação cultural do sujeito e que, na maioria das vezes, não é percebida pelo autor ou pelo leitor e que os fatos e documentos históricos pactuam com essa mesma formação cultural do indivíduo é que pode se buscar uma aproximação de fato construtiva e integradora.  Nota-se que pesquisadores da área da literatura preocupam-se em demasiado com a forma e a estrutura interna de um texto, sem perceberem que texto também é contexto e como tal está inserido em uma sociedade, ao passo de que a história, em muitos casos, preocupa-se muito com os movimentos sociais em nível macro, sem, contudo, especular todo o processo de formação cultural que acaba por definir atitudes e comportamentos de um indivíduo ou grupo.

Literatura e história não devem buscar respostas para suas questões unicamente na aplicação técnica, mas sim, aceitar que uma obra ficcional e um documento histórico podem ser, que tudo deve ser posto em dúvida e que interesses sempre estarão por trás da história oficial ou do cânone literário.  Se a história deve questionar os documentos oficiais, a literatura deve aceitar a incompletude da obra, pois somente assim estará respeitando o autor enquanto ser inserido em uma sociedade, falho como ela, ao mesmo tempo crítico e conservador.

Partindo do pressuposto de que a literatura, para fugir da concepção da arte pela arte, é primeiro reflexão (a partir do processo de formação cultural), depois representação da realidade (não se constituindo documento, mas sendo importante para compreensão de uma sociedade) para, novamente, ser objeto de reflexão no efeito que exerce sobre o leitor, pode-se pensar que as críticas sociais, o conservadorismo e/ou a resistência a regimes autoritários – enquanto temas da obra literária – são, antes de mais nada, um olhar sobre a sociedade humana.  

Dessa forma, entende-se por que muitas obras são pretexto para que ideologias sejam postas em prática.  Tanto governos autoritários de direita quanto de esquerda se sustentam ou alcançam o poder com base em ideologias que são, muitas vezes, inculcadas pela literatura enquanto veículo desses ideais.  Ao fazer uma relação entre a história do Brasil e sua constituição sobre séculos de guerras, escravidão, tortura e assassinatos, é que se pode ter uma dimensão do papel que a literatura exerceu: ao mesmo tempo aliada e contestadora dos interesses dos grupos dominantes. 

Fazendo associações entre fatos históricos e obras literárias é que se pode, se não afirmar, especular sobre as transformações sociais vivenciadas pelo escritor e poeta enquanto indivíduo inserido na sociedade.  Não há condições de um indivíduo se alienar completamente do mundo a sua volta para produzir sua obra, ele estará pleno de traumas, recalque e revoltas, pois esse indivíduo se desnuda na arte literária, mostrando mais do que aparenta ser, ou seja, diz mais sobre si e sobre a realidade, só que de forma velada e de difícil compreensão.

Esse deve ser o ponto chave da interdisciplinaridade a ser empregada pelas ciências sociais (incluindo-se aí as artes e a literatura): compreender a essência (e a existência) humana para, a partir daí, externar uma visão crítica a todo um processo histórico estruturado sobre ruínas de civilizações que não tiveram poder para se impor ou resistir à dominação imposta.  Talvez assim a literatura possa contribuir para que a história não precise se repetir na forma de dominação, mas sim de um desenvolvimento social mais humano.


Novamente se faz necessário extrapolar o universo entre as disciplinas e criar novas visões, pois se os regimes autoritários visam manter o patamar das verdades absolutas sem questionamentos, rebaixando o ser humano a categoria de objeto, de engrenagem da máquina social sem vontade ou liberdade, qualquer manifestação que resgate o valor humano, mesmo sem comprometimento político, questiona, e pensamento e ação se completam na história que se renova.

Sabendo disso é que se pode ler um romance ou um poema como sendo produto de uma formação cultural e ao mesmo tempo base para novas reflexões.  No caso do poema isso é ainda mais forte: o poema transforma-se em poesia na sua completude com o leitor.  Resistência, alienação, contestação, revolta, conformismo, esquecimento são apenas alguns sentimentos que a obra, digo, o indivíduo carrega em si.  É, portanto, necessário fugir do acomodamento e segurança das dimensões limitadas que cada ciência usufrui para buscar novos horizontes.  Quais?  Talvez ninguém saiba ao certo, o certo é que a discussão abre caminhos até então intransponíveis e o futuro precisa de reflexão para não ser construído sobre as ruínas do presente.

Considerando essa relação entre a literatura e a história, pode-se levantar um questionamento sobre o momento de transformação vivido, ou melhor, sobre as transformações que a sociedade vem vivenciando e não tem encontrado respostas para os novos problemas oriundos dessa nova “ordem” social.  A fragmentação entre o conteúdo e a forma literária nunca encontrou tamanho eco na própria sociedade, que se vê também desestruturada e fragilizada.

Assim, o primeiro argumento em prol dessa ruptura é o de que a produção literária vem atendendo à demanda constante de uma postura crítica perante as relações humanas e sociais.  Apesar de estarem presentes as tensões oriundas da supremacia de poder de determinadas minorias dominantes, que detêm o poder (principalmente econômico e político), alicerçando-o e justificando-se com o emprego da ideologia, verifica-se também que existe uma oposição perante estas situações de dominação.

A visão otimista de que a sociedade está preparada para resistir a essa imposição de valores ou, ao menos, fazer frente à propaganda oficial das estruturas dominantes, é quase que utópica, no entanto, a possibilidade existe, a reflexão pode ser objeto de preocupação de cada vez mais pessoas, oportunizando, assim, a transformação pretendida, na qual a autonomia possa ser um elemento presente nas negociações sociais.

Dentro dessa perspectiva, se faz necessária a não absorção romântica dos ideais de uma sociedade igualitária, una e coesa.  Ao contrário, a autonomia deve ser sinônima de compreensão (ou o quanto isso for possível) das diferenças entre as diversas culturas, permitindo espaço para a reflexão sobre o real, sobre os conceitos dogmáticos, na busca de um constante questionamento sobre o que é verdade.

O caso do Brasil é muito interessante nessa visão afirmativa da sociedade.  A ruptura evidenciada não encontra espaço dentro da visão positiva brasileira, ou seja, enquanto os demais países Latino-Americanos enfrentaram a violência e a perseguição atingindo, portanto, uma consciência dos problemas vividos e da importância do posicionamento e do engajamento (quer artístico ou político) como fatores de resistência e de rejeição às práticas de dominação, a sociedade brasileira ainda estava calcada em uma visão otimista e idealizada de uma constituição histórica pacífica e harmônica.

Que violência ocorreu na história brasileira?  Essa é uma pergunta que ainda está presente na boca daqueles que defendem ou que estão alienados perante os problemas da sociedade.  Que problemas?  A sociedade brasileira e grande parte dos intelectuais e escritores e poetas parece que não rompeu com esse estigma de felicidade presente e reinante neste paraíso tropical.

Mais do que apresentar respostas, este pequeno relato visa questionar aquilo que salta aos olhos, aquilo que está diariamente presente nas casas e lares de milhares de pessoas e que elas mesmas não são capazes de perceberem, ou por alienação ou por subordinação... às leis, ao dinheiro, ao conforto e tantos outros poderes constituídos pela sociedade ao longo de séculos de violência.  Esse hiato é que deve ser resolvido não apenas entre história e literatura, mas evidenciar uma reflexão sobre o não-importismo com o outro, com a ausência de postura crítica, com o apagamento da arte, da literatura, da história...

Assim, uma postura perante o conceito de história deve ser adotada visando estabelecer que estruturas estão sendo analisadas e definidas como “verdade”.  A observação de Walter Benjamin [2] de que existe uma apropriação de uma reminiscência, ou seja, de uma lembrança idealizada e comprometida, não isenta do compromisso pretendido pela ciência em sua matriz geradora: de pactuar com os fatos e não com os interesses; sabe-se que isso é muito difícil e quase impossível de superar, a não ser pela constante revisão e questionamento, identificando, inclusive, as estruturas que direcionaram determinado pensamento em determinada época.E para que o pensamento crítico seja possível, para que questionamentos sejam a chave para a reflexão é que se faz necessário (e urgente) o emprego de certos procedimentos na busca do desvencilhamento dos idealismos reificadores das práticas cotidianas de exclusão e de imposição de valores.  Um desses procedimentos, apontado por Reinaldo Marques [3] , consiste em investigar as conexões do poeta e da poesia com a tarefa de construção da nacionalidade, a fim de determinar de que modo um tal engajamento afeta os estatutos do poeta e da poesia, alterando-lhes a concepção, os procedimentos e enquadramentos enunciativos.George Steiner vai mais a fundo nessa reflexão, apresentando uma preocupação com o próprio fazer poético, criticando o escrever sob encomenda, sem profundidade ou sentimento, relegando esse papel de inferioridade à poesia.

Para o poeta é melhor mutilar o seu próprio idioma do que conferir dignidade ao desumano, seja por seu dom, seja por sua indiferença.  Se o jugo totalitário for tão eficaz a ponto de frustrar todas as oportunidades de dnúncia, de sátira, então que o poeta se extinga. (...) Se as palavras pronunciadas no meio urbano estão impregnadas de selvageria e mentiras, nada fala mais alto do que o poema não-escrito. [4]

Tal abordagem pode servir perfeitamente para essa problemática de exaltação nacionalista de cunho positivo presente na sociedade brasileira, que deve ser rompida e transformada – no que não se pode definir ou conceber.  A questão da identidade e da construção (convivência-aceitação) da diferença evidencia uma preocupação com um   nacionalismo bastante perigoso, o mesmo que preocupava Benjamin nos anos 20 e 30, para quem as estratégias alegóricas de dissociação eram lúcidas também enquanto antídoto para aquela resistência às alienações contemporâneas pela via de uma coesão orgânica cujo solo é uma mitologia regressiva de tipo nacional, mitologia cuja exacerbação desemboca no fascismo [5]

Assim, diante de tais constatações de rejeição ao diálogo entre a sociedade e mesmo entre áreas do saber tão conexas e dependentes uma da outra dentro de uma visão que objetiva o questionamento de mecanismos de dominação, cabe salientar a necessidade imperiosa de falar, de cantar e de refletir sobre os temas que são caros a essa mesma sociedade - cultura, verdade, identidade, democracia - para identificar se são de fato aquilo que representam. “ ‘Agora as Sereias têm uma arma ainda mais fatal do que suas canções’, escreveu Kafka nas Parábolas, ‘ou seja, o silêncio.  E, embora por certo isso jamais tenha acontecido, ainda assim é possível que alguém tenha escapado do canto das sereias; mas de seu silêncio, certamente, jamais.’ ” [6] Para deixar uma questão em aberto: será que a literatura e a história e a própria sociedade organizada e estruturada não estão se calando perante os problemas e as transformações com o intuito de seduzirem por meio do apagamento e do esquecimento a todas as minorias que não se enquadram na política calcada na exclusão e na supressão de direitos?



[1] Doutorando em Letras - UFSM
[2] Walter Benjamin. Sobre o conceito de história. In: Magia, Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
[3] Reinaldo Marques. Poesia e nacionalidade: a construção da diferença. In: Limiares e Críticos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
[4] George Steiner. O Poeta e o Silêncio. In: Literatura e Silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
[5] Ismail Xavier. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. MEC\Funarte, 1984.
[6] George Steiner. O Poeta e o Silêncio. In: Literatura e Silêncio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


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