DA PERSEGUIÇÃO
NAZISTA AO EXÍLIO BRASILEIRO: O IDEAL HUMANISTA DE STEFAN ZWEIG [1]
Rosani
U. K. Umbach (UFSM)
A
perseguição que lhe foi imposta pela ditadura nazista levou Stefan
Zweig ao exílio, inicialmente em outros países, depois no Brasil.
Com os olhos voltados aos acontecimentos na Europa, o autor publica
Brasilien – Ein Land der Zukunft em que aponta o Brasil
como um modelo oposto à ideologia nacional-socialista existente
na Alemanha, que a levava à autodestruição.
Stefan
Zweig é considerado um dos grandes autores da literatura alemã
de exílio, que assume uma posição especial no século XX: refere-se
às obras de autores que fugiram da dominação nacional-socialista,
que persistiu de 1933 a 1945. A emigração dos intelectuais de
língua alemã ocorreu principalmente em dois momentos: o primeiro
foi em 1933, depois da ascensão de Hitler ao poder e, sobretudo,
depois do início da perseguição aos escritores alemães, simbolizado
pela publicação, na imprensa, de uma ‚lista negra‘ de 44 escritores
de língua alemã, considerados indesejáveis pelo regime, e pela
Bücherverbrennung, a queima de livros em cidades universitárias
no dia 10 de maio de 1933; o segundo momento corresponde aos anos
de 1938 e 1939, quando principalmente intelectuais austríacos
emigraram devido à anexação da Áustria e Tchecoslováquia e ao
início da II Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, muitos emigrantes
que viviam em outros países europeus agora ameaçados pela Guerra
empreenderam uma segunda fuga para além-mar. Surgiram, então,
novas editoras, jornais e revistas de emigrantes, por exemplo
em Amsterdam, Londres, Praga, Nova York e cidade do México. A
literatura de exílio publicada nesses meios de divulgação tinha,
nas suas diversas formas, uma coisa em comum: a oposição incontestável
ao nacional-socialismo.
Durante
a vigência da ditadura nazista na Europa, entre os muitos escritores
que tiveram de partir para o exílio estava o austríaco Stefan
Zweig, nascido em Viena em 1881. Ele estudou em Berlim e Viena,
viveu como escritor autônomo na maior parte do tempo em Viena,
embora empreendesse longas viagens ao exterior. Durante a I Guerra
Mundial, viveu na Suíça e, a partir de 1919 at, em Salzburg, na
Áustria. Stefan Zweig fez parte da ‚lista negra‘ de autores de
língua alemã, entre os quais também estavam Bertolt Brecht, Alfred
Döblin e Heinrich Mann, por exemplo, cujos livros foram retirados
das bibliotecas e livrarias e queimados em praça pública pelos
nazistas em 1933. Em 1938, emigra para a Inglaterra, de lá para
os Estados Unidos e finalmente, em 1941, para o Brasil. Deprimido
com a situação de barbárie na Europa durante a II Guerra, Zweig
suicida-se juntamente com sua mulher em fevereiro de 1942 em Petrópolis,
Rio de Janeiro.
O
poliglota Stefan Zweig era, em seu tempo, um mediador entre as
nações, sendo considerado o típico literato europeu. Apresentou-se
desde sua juventude como tradutor de Verlaine, Baudelaire e sobretudo
de Verhaeren, publicando em 1901 suas primeiras poesias sob o
título Silberne Saiten. Tanto sua obra épica como suas
miniaturas históricas e os trabalhos biográficos o tornaram famoso.
Ele foi um dos autores mais lidos de sua época, certamente devido
à sua prosa cheia de nuanças e extremamente cultivada, mas de
fácil leitura. Seus livros foram traduzidos para todas as línguas
culturalmente importantes. Seus ensaios sobre Hölderlin, Kleist,
Nietzsche e Balzac, entre outros, evidenciam a complexidade e
a abrangência do espírito europeu, além de apontarem para os perigos
aos quais os gênios estão expostos. As biografias históricas,
entre as quais Fouché e Erasmus von Rotterdam, dão
mostras de uma postura profundamente humanística do autor. Em
1944, surgem suas memórias, publicadas postumamente sob o título
Die Welt von gestern, uma obra em prosa sobre uma época
que já passou.
Stefan
Zweig descreveu, já no exílio, o pesar com que deixou Viena, sua
cidade natal, em um texto intitulado „Abschied von Wien“ (Despedida
de Viena, in: Schwarz u. Wegner 1964). É uma narrativa que mostra
o absurdo da perseguição de Hitler aos judeus, os quais foram
obrigados a deixar suas casas, seus pertences, sua pátria, seus
passaportes e, não raras vezes, seus familiares – o próprio Zweig
não tornou a ver sua mãe de 84 anos de idade, que havia ficado
em Viena e morreu pouco depois.
Como
quase todos os autores importantes da literatura alemã na época,
Stefan Zweig passou a viver no exílio em conseqüência das perseguições
nazistas, mas, como eles, continuou atento ao que se passava na
Europa. Embora a postura política dos escritores exilados fosse
bastante divergente – havia anarquistas, stalinistas, socialistas,
liberais – eles tinham em comum a consciência de representar uma
Alemanha diferente daquela que os exilou.
Stefan
Zweig via a guerra como uma sombra em sua vida, uma sombra que
pairava sobre cada um de seus pensamentos, de dia e de noite (In:
Schwarz u. Wegner 1964: 201). Essa sombra também acompanhava seus
escritos, não apenas porque o afetara pessoalmente, mas porque
representava a negação daquilo que idealizava. Em oposição à sombra
da ditadura nazista, o autor falava, em seus textos, de um futuro
sem a sombra das guerras sobrepondo-se umas às outras.
Nesse
contexto, Brasilien – Ein Land der Zukunft representa o
ideal humanista de Stefan Zweig. O autor lança um olhar para a
frente, para um modelo de país do futuro, no qual as pessoas viveriam
em harmonia e livres de preconceitos, tendo por base um humanismo
liberal. Abordando aspectos da história, economia e cultura do
Brasil, Zweig não apenas tenta explicar o presente a partir do
passado, mas sobretudo mostrar o Brasil como um modelo que se
opõe à autodestruição resultante do fanatismo ideológico dominante
na Europa durante o nazismo. Em meio à II Guerra Mundial, o autor
vê no Brasil possibilidades alternativas, direcionadas para o
futuro. A Europa, ao contrário, mesmo tendo infinitamente mais
tradição, teria menos futuro (Zweig 1984: 169)
[2] , pois lá haveria um dinamismo exagerado, que levaria
à concorrência e finalmente à guerra entre uma nação e outra.
Entre as características tragicamente superestimadas, na época,
como valores morais de um povo, o autor aponta a energia, a veemência
e o dinamismo. Tendo sofrido pessoalmente as conseqüências “dessas
exaltadas tensões psíquicas, dessa avidez e fúria do poder” sob
o Nazismo europeu, Zweig aprecia, no Brasil, justamente “essa
forma de vida mais suave e serena”, que considera como alívio
e felicidade (Idem: 16).
Sua
imagem positiva do Brasil não o impede, entretanto, de ver as
precárias condições de vida da maioria da população, o ainda incipiente
desempenho industrial, o atraso tecnológico e a burocracia administrativa
do país. Mesmo assim, Stefan Zweig aposta no Brasil como modelo
de um novo futuro para a civilização com base em duas características
que seu povo apresentaria: o caráter pacífico e a postura humanista
(Idem: 16-7). Da mesma forma que Theodor Adorno
[3] , filósofo da Escola de Frankfurt, Zweig denuncia a primazia
do conhecimento tecnológico em detrimento de valores humanistas,
afirmando, ainda, que a organização e o conforto material de um
povo não são sinônimos de „civilização“ e „cultura“:
Nós
vimos que um alto grau de organização não impediu que povos utilizassem
essa organização unicamente no sentido da bestialidade ao invés
de no sentido da humanidade, e que nossa civilização européia
abandonou a si própria por duas vezes no decorrer de um quarto
de século. Assim, não estamos mais dispostos a reconhecer uma
hierarquia que leve em conta a potência industrial, financeira,
militar de um povo, mas, sim, de estabelecer, como medida da exemplaridade
de um país, o seu caráter pacífico e sua postura humanista (Zweig
1984: 17).
O
autor vê o Brasil como um país “que odeia a guerra”, apontando
para o fato de que, com exceção “daquele Episódio do Paraguai”
provocado por um “ditador enlouquecido”, o Brasil teria resolvido
todos os seus conflitos de fronteira com os vizinhos, valendo-se
de acordos amigáveis e apelos a tribunais internacionais (Idem:
17-8). Além disso, salienta Zweig, “[n]unca a paz do mundo esteve
ameaçada por sua política e, mesmo em um tempo incerto como o
nosso, não se consegue imaginar que esse princípio fundamental
de seu pensamento nacional, essa predisposição para o entendimento
e a compatibilidade, pudesse se alterar algum dia”(Idem: 18).
Do ponto de vista do autor, a postura do Brasil no contexto internacional,
essa predisposição para a conciliação, essa atitude humana não
se deve apenas aos seus governantes. Seria muito mais o “produto
natural do caráter de um povo, da tolerância inata do brasileiro”
(Idem: Ibidem).
É
com base nesses pressupostos que, em meio à II Guerra Mundial,
Stefan Zweig lança um olhar de volta à ditadura nazista, denunciando
o racismo e o ufanismo implantados na Alemanha. Transtornado com
o rumo dos acontecimentos na Europa, onde o nazismo se alastrava,
tentando subjugar o maior número possível de países, o autor acredita
no Brasil como “um país do futuro”. E afirma que, se a civilização
no velho mundo realmente se autodestruir, saberá que “aqui [no
Brasil] uma nova está em formação, preparada para tornar realidade,
mais uma vez, tudo aquilo que as gerações intelectuais mais nobres
na Europa em vão desejaram e sonharam: uma cultura pacífica e
humana” (Idem: 70-1).
O
“país do futuro” idealizado por Zweig, entretanto, não se concretizou
no Brasil. Uma das razões talvez seja encontrada no processo histórico
brasileiro que, conforme Segatto, caracterizou-se por ter sido
marcadamente excludente e autoritário. De acordo com o autor,
o Estado brasileiro sempre se impôs, através da classe dominante,
sobre a sociedade civil:
A classe
dominante organizou o Estado como um aparato de poder exclusivo,
dissociado da sociedade. Sem capacidade dirigente ou hegemônica,
valeu-se sempre do Estado para exercer seu domínio pela coerção.
Em quase todas as tentativas de organização, mobilização, reivindicações,
contestação da ordem, por parte das classes dominadas, o Estado
agiu prontamente para impedir, seja pela repressão pura e simples
seja por outras formas, como a manipulação e a cooptação ou ainda
por meio da criação de instrumentos jurídico-políticos de controle
e exclusão. (SEGATTO 1999: 202)
Assim,
o que Zweig detectou como sendo a “tolerância inata do brasileiro”,
sua “predisposição para o entendimento e a compatibilidade” talvez
sejam características de apenas uma parcela da sociedade brasileira:
a das classes dominadas e excluídas, submetidas ao que Segatto
denomina de “cidadania de ficção”. É possível que, quando a realidade
histórica concreta deixar de ser “excludente e antidemocrática,
opressiva e repressiva, iníquia e discriminatória” (SEGATTO 1999:
219), o Brasil consiga, enfim, transformar-se em um “país do futuro”.
Passados
mais de sessenta anos, os ideais humanistas de escritores como
Stefan Zweig continuam atuais, e sua divulgação se torna necessária
em um mundo cada vez mais egoísta, explorador, conflituoso e cheio
de preconceitos, em que classes e países tentam impor seus padrões
e valores sobre os outros, desenvolvendo uma predisposição para
a guerra e a violência, ao invés de uma “predisposição para o
entendimento e a compatibilidade” (Zweig 1984: 18).
Bibliografia
ADORNO, Theodor. “Educação após Auschwitz”. In: ____. Sociologia. São
Paulo, Ática 1986, 33-45.
SCHWARZ,
Egon; WEGNER, Matthias (Hg.). Verbannung. Aufzeichnungen deutscher
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SEGATTO,
José Antonio. “Cidadania de ficção”. In: José Antonio Segatto e Ude
Baldan (org.) Sociedade e literatura no Brasil. São Paulo,
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WULF,
Joseph. Literatur und Dichtung im Dritten Reich. Eine Dokumentation.
Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, 1966.
ZWEIG,
Stefan. Schachnovelle. Frankfurt a.M., Fischer 1990.
______.
Brasilien – Ein Land der Zukunft. Frankfurt a.M., Suhrkamp
1984.
[1]
Partes deste trabalho foram apresentadas na seção „Lateinamerika
und Deutschland – Blick und Gegenblick“ do XI Congresso Latino-americano
de Estudos Germanísticos, realizado de 27/9 a 3/10/2003 em São
Paulo, Paraty e Petrópolis.
[2] Tradução minha a partir da edição alemã. Os demais
trechos citados neste trabalho também foram traduzidos por mim.
[3] Por exemplo em „Educação após Auschwitz“. In:
Sociologia. São Paulo, Ática 1986, 33-45.