IDENTIDADE NEGATIVA,
MARGINAL [1]
João Luis Pereira
Ourique [2]
Resumo
Tendo
em vista o debate envolvendo a questão da identidade dentro de
uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, nova e problemática é que
este trabalho se apresenta como uma possibilidade de leitura acerca
da chamada “literatura marginal”. Inseridos em um contexto de
violência e autoritarismo, os poetas marginais procuraram, além
de mostrar os novos sujeitos dentro de uma sociedade cada vez
mais inconstante, denunciar a repressão que a sociedade brasileira
estava sofrendo a partir do golpe de Estado de 1964. Os novos
sujeitos e a indefinição do conceito de identidade são
temas tratados no decorrer do trabalho, salientando a necessidade
do posicionamento crítico perante as transformações ocorridas
através da releitura de textos de Theodor Adorno.
Uma das reflexões
que instigam o debate sobre a identidade e, em relação a esta,
as questões sobre a estética, é a noção sobre que período a sociedade
está vivenciando: percebe-se uma continuidade da modernidade dentro
dos padrões do Iluminismo ou a concepção de pós-modernidade vem
a apresentar novos paradigmas visando esclarecer alguns
problemas de interpretação da realidade?
A
opinião de Gianne Vattimo [3] de que há aspectos em comum na
percepção de um ser humano uno e harmônico e que essa percepção
contribuiu para que diversas culturas fossem prejudicadas à luz
de uma idealização, leva a uma reflexão e a posturas praticamente
inquestionáveis. Seguindo suas afirmações, a pós-modernidade
é o momento da passagem da utopia para a heterotopia, da aceitação
das diversas "sub-culturas" no papel de construção de
uma sociedade que não é igualitária, mas que necessita aceitar
o conflito e as diferenças.
Apesar
disso, o ponto principal desta inserção não é o do questionamento
se o momento presente (entendendo como contemporaneidade as transformações
vividas a partir dos anos 50) insere-se em uma modernidade tardia
ou em uma pós-modernidade, justificada, principalmente, pela explosão
dos mass media. Essa não priorização do tema não minimiza
ou nega a validade deste debate, visa abordar os aspectos relativos
à relação do indivíduo com a sociedade e, por fim, a concepção
deste indivíduo. Essa "inversão" do processo investigativo
busca salientar a necessidade de retorno à valorização da individualidade
e da subjetividade distantes (o máximo possível) do processo de
inculcação de valores que culmina com a ausência da autonomia
[4] de pensamento.
Assim,
apresenta-se uma tentativa de resgatar alguns conceitos essenciais
para auxiliarem nessas incursões, sendo que a base dessa estrutura
é a Teoria Crítica, partindo, inicialmente da desconstrução ou
da implosão dos conceitos para recriá-los, reelaborá-los
numa concepção que busca o entendimento e a percepção da realidade.
Uma realidade que, segundo Nietzsche, é uma fábula na qual
o homem se insere e busca uma harmonia que não existe, uma visão
estreita de mundo percebida e tida como pronta e acabada, totalitária
e vazia de significados além daqueles propostos como verdades
absolutas.
Por
sua vez, o que Marx apresenta como sendo uma forma de direcionar
o pensamento social, bem como o seu comportamento enquanto sociedade,
é a ideologia que fica escondida atrás de ilusões e mascaramentos
da realidade, a ideologia que oculta os ideais de grupos dominantes.
Apesar dos posicionamentos políticos e da "aplicação prática" [5] dos seus estudos, o pensamento marxista influenciou
definitivamente a concepção sobre a sociedade e as relações de
poder exercidas entre as classes sociais que as compõem. Aqui
é importante enfatizar a problemática existente nessas relações,
não no intuito de explicá-las, mas, de acordo com Foucault [6] , entender que uma sociedade sem estruturas
de poder só pode ser uma abstração.
Acrescenta
ainda que dizer que não pode haver uma sociedade sem relações
de poder não é dizer que aquelas que são estabelecidas são necessárias,
havendo uma tarefa política permanente, inerente em toda a existência
social de proceder à análise, elaboração e questionamento dessas
relações. Opinião essa compartilhada por José Saramago [7] que evidencia a necessidade do debate sobre a “democracia”,
ou seja, de toda a experiência humana com o processo democrático,
que deve ser questionado e discutido permanente e constantemente,
sob pena de a sociedade sucumbir aos dogmas do autoritarismo e
das leis reificadoras do mercado.
Surgem,
então, dois estudos neste sentido e que representam um marco importante
para esta abordagem. As reflexões sobre o conceito de história [8] proposto por Walter Benjamin
e os questionamentos presentes na sua abordagem sobre a Alegoria [9] são fundamentais para a continuidade do pensamento de Nietzsche
no que tange a percepção de que não há verdades absolutas, e que
sob uma leitura alegórica, o "falso brilho do totalitarismo
se apaga". [10]
Sobre o conceito
de história, a proposição de Benjamin busca questionar os valores
e os paradigmas até então inquebrantáveis (hoje ainda presentes,
apesar de passíveis de discussão) do documento histórico e do
apagamento de culturas sob o jugo do poder dos vencedores, os
mesmos que contam a história oficial.
Essa
recuperação de alguns estudos é fundamental para o aprofundamento
da questão proposta, de não refletir sobre qual teoria tem maior
ou menor valor, relacionando-as de modo a buscar seu entendimento
através da seguinte abordagem: pontos de vista. O problema,
portanto, não está na definição do que é modernidade, do que é
pós-modernidade ou identidade, mas sim da inserção do indivíduo
neste processo.
Enquanto o Iluminismo
almejou explicações sobre a sociedade ideal, totalizando o homem
como um ser em evolução, abominando o conflito e buscando sempre
o consenso, as transformações ocorridas (também graças ao advento
das ciências e da razão) vieram a relativizar o próprio pensamento
sobre a coletividade, sobre suas relações, aceitando o conflito
e a diferença como sendo parte integrante na "nova"
ordem social.
Neste
ponto da discussão é importante o resgate da obra de Theodor Adorno:
a Dialética Negativa [11] . Se as discussões sobre a
pós-modernidade enfatizam as diferenças como sendo a essência
da sociedade e a rejeição às verdades absolutas impostas à coletividade,
então, os estudos de Adorno se inserem com validade e, inclusive,
necessidade de releitura, salientando, para tanto, um afastamento
dos aspectos afetivos que permearam sua inserção nos estudos
Latino-Americanos, com vistas a alcançar a efetividade
de suas posturas críticas
[12] . Essa nova leitura deve partir também de um ponto de
vista específico, o do indivíduo. A obra de Adorno encontra seu
diferencial exatamente por esta vertente, pois não há uma preocupação
em alocar o indivíduo em determinada sociedade ou grupo
social, o que Adorno pretende é estimular a autonomia do pensamento,
independentemente do meio social em que vive
[13] .
Para tanto, as obras
de arte são elementos que ajudam a emancipação desse mesmo indivíduo; nesse sentido, a crítica que ele recebe de elitista em relação ao que
seria obra de arte perde muito do seu significado, pois ele apresenta
o seu ponto de vista para a emancipação do indivíduo dentro de
uma sociedade de que faz parte, falando sobre o que conhece e
sobre a sua cultura. Também em seus estudos fica bem claro o
seu não preconceito com as diversas culturas; se ele recorre a
um ideal de arte, ele o faz sob o ponto de vista de uma
pessoa e não da coletividade, criticando, portanto, a massificação
do pensamento humano através da cultura industrial.
E
esse também é o momento mais produtivo do debate protagonizado
entre ele e Benjamin, pois enquanto o primeiro crê que a obra
de arte deveria manter sua aura sem ser corrompida pela produção
em massa, o outro acredita que a reprodutibilidade técnica das
obras de arte levaria às pessoas a cultura. Mesmo nessa perspectiva,
Adorno não pode ser tachado de preconceituoso quanto às produções
artísticas periféricas [14] , pois é graças a estudos como
os que ele propôs que o cânone pode ser questionado.
A
identidade pode também ser percebida como a afirmação do indivíduo
dentro de uma dialética que é capaz (ou pretende) de não só chegar
ao consenso, mas também compreender as razões do outro, não apenas
para aceitá-las, mas para conviver com a diferença. A identidade,
numa concepção desconstrutiva, negativa, evidencia uma
indefinição, uma fragmentação que só pode ser percebida através
da inconstância do homem moderno (ou pós-moderno), da passagem
de uma mentalidade cognitiva para um pensamento pós-cognitivo
[15] .
Outro
aspecto muito interessante do pensamento de Adorno é a sua reflexão
sobre a razão instrumental [16] que veio a enfrentar, afrontar
e derrubar o mito e a mágica como verdade suprema e acaba, ela
mesma, regredindo à mitologia, sendo o ideal do Iluminismo uma
verdade mítica e dotada de uma dialética distante da emancipação
do homem.
Mas
se o homem, exilado da natureza e de si mesmo, necessita de salvação,
tal salvação não pode ser pensada nas condições atuais (...) Não
é possível hoje em dia imaginar a reconciliação do homem com a
natureza, assim como não é possível imaginar um saber em que os
conceitos sejam inteiramente adequados a seus objetos. A utopia
não pode ser conceitualizada nem na perspectiva da filosofia da
História, nem na perspectiva da teoria do conhecimento. Qualquer
tentativa de realizar a utopia histórica ou a utopia sistemática
implicaria sucumbir à astúcia da razão iluminista
[17] .
Ainda,
segundo Habermas, o Iluminismo se julga capaz de concretizar todas
as aspirações da humanidade através da razão instrumental sob
a forma do positivismo. Em oposição a este pensamento, a Teoria
Crítica trabalha o postulado da não-identidade como sendo uma
proposição mais adequada ao confronto com o autoconhecimento do
Espírito Absoluto proveniente da síntese totalizante da dialética
hegeliana.
Dessa forma, Adorno
enfatiza a impossibilidade de realizar a utopia, afirmando que
a busca da sua realização é inicialmente repressiva, levando,
progressivamente, ao totalitarismo, tido por ele como sinônimo
desta totalização do indivíduo e do espírito.
O
que leva Adorno, invertendo a fórmula hegeliana, a afirmar que
"das Ganze ist das Unwahre" - o todo é
falso. Pois tal totalização acabaria transformando-se numa paródia
da totalização iluminista, ela mesma uma paródia da totalização
utópica, tal como anunciada na tradição hegeliano-marxista [18] .
Habermas [19] lembra que a questão da não-identidade é
retomada na Dialética Negativa, momento em que Adorno procura
confrontar a busca da unidade, da totalidade, com a sua conseqüente
anulação do sujeito, objetivando preservar uma espécie
de possibilidade de pensar utilizando sua própria formação cultural
sem, no entanto, sucumbir a ela.
Crer
que a verdade de uma teoria é a mesma coisa que sua fecundidade
é um erro. Muitas pessoas parecem, no entanto, admitir o contrário
disso. Elas acham que a teoria tem tão pouca necessidade de encontrar
aplicação no pensamento, que ela deveria antes dispensá-lo pura
e simplesmente. Elas interpretam toda declaração equivocadamente
no sentido de uma definitiva profissão de fé, imperativo ou tabu.
Elas querem submeter-se à Idéia como se fora um Deus, ou atacá-la
como se fora um ídolo. O que lhes falta, em face dela, é a liberdade.
Mas é próprio da verdade o fato de que participamos dela enquanto
sujeitos ativos. Uma pessoa pode ouvir frases que são em si mesmas
verdadeiras, mas só perceberá sua verdade na medida em que está
pensando e continua a pensar, ao ouvi-las [20] .
Essa
citação, proveniente da Dialética do Esclarecimento é uma
resposta às posturas intelectualizantes perante aos conceitos
elaborados e definidos como “verdades”. A liberdade salientada
não está preocupada em sua definição filosófica do que é liberdade,
mas sim dentro de um ponto de vista preocupado em que haja espaço
de inserção para a reflexão e, principalmente, a crítica e ao
questionamento dos dogmas apresentados.
Assim,
é interessante como uma aparente fuga do tema salientado no título
(Identidade) pode ser retomada dentro de uma releitura da produção
literária brasileira que se iniciou nos anos 60. A literatura
marginal pode ser entendida como um fenômeno não de identidade,
mas identitário, ou seja, a busca de uma identificação
[21] com uma realidade cultural e social que não é aquela
entendida como o referencial da formação cultural do Brasil.
O
isolamento do Brasil “cultural” em relação ao restante da América
Latina, colocava-o como um elemento estranho, único e diferente.
Isso levava a crer que os problemas aqui vivenciados nada tinham
a ver com a situação política e econômica de dominação, advindos
de um processo histórico de colonização e apagamento das culturas
locais. Foi necessário que as dificuldades existentes no processo
“democrático” brasileiro viessem à tona sob a sua forma mais cruel:
a do acirramento do autoritarismo através da ditadura nos mesmos
moldes dos vizinhos países.
Nos
anos 60, as dificuldades para a concretização do nacional desenvolvimentismo
e a falência dos regimes democráticos desembocaram numa original
forma de pensar: articulava-se a teoria da dependência, de origem
cepalina, que unificava num mesmo patamar de compreensão as nações
latino-americanas. Seria, enfim, a identidade latino-americana
que se revelava no contexto brasileiro, irmanando toda a América
em face das condições históricas semelhantes?
[22]
A resposta da pergunta é a afirmação, ainda segundo Sandra Pesavento,
de que a identidade nacional se apoiava na herança colonial, fazendo
com que o ideal de nação se constituísse em função do outro imperialista. Isso levou a
maior parte da intelectualidade brasileira ao engajamento de esquerda
“e os discursos histórico e literário manifestavam essa tendência,
compondo o que se poderia chamar uma tendência social de representação
da realidade brasileira”.
[23]
Torna-se
interessante, nessa perspectiva, comentar o movimento da Tropicália
que teve Gilberto Gil e Caetano Veloso como seus mais conhecidos
representantes. Esse movimento pode ser entendido como um período
de amadurecimento da relação do Brasil com a sua cultura, ou seja, de uma identificação
enquanto país latino-americano e de sua distanciada participação
de problemas que até então inexistiam. Aprofundando um
pouco esta questão, pode-se dizer, inclusive, que se tratou de
uma não valorização de uma identidade em oposição, que negava
o domínio imposto, mas de um reconhecimento enquanto indivíduos
colonizados [24] , constituindo-se isso como um elemento vital
para que as diferenças em relação a esta dominação pudessem/possam
ser – ao menos – questionadas e enfrentadas no campo da ideologia.
Ou “será que nunca faremos senão confirmar // a incompetência
da América católica // que sempre precisará de ridículos tiranos” [25] . Ainda pode-se afirmar que a identidade
está fragmentada e desconstituída de sua convencionalidade burocrática
e também da sua identificação com a sociedade composta pela maioria
desprovida de poder (oriundo da força, da educação, do dinheiro):
“Por entre fotos e nomes // sem livros e sem fuzil // sem fome
sem telefone // no coração do Brasil”
[26] .
“Noite
profunda. Sono profundo. Esperança rasa.”
[27] Com esse sentimento de indignação, o período de exceção
vivido pelo Brasil, principalmente no período compreendido entre
os anos de 1968 e 1978 [28] , externou uma preocupação crítica de oposição
ao processo de dominação, censura e exclusão das diferenças –
principalmente políticas, mas não se restringindo a estas – que
nortearam a produção literária da época. Enfim, a literatura
marginal incorporou a luta contra a repressão,
pois “en la lucha de clases // todas las armas son buenas // piedras
// noches // poemas” [29] .
Uma crítica ainda mais direta ao recrudescimento é apresentada no poema
de Cacaso Logia
e mitologia: “Meu coração // de mil e novecentos e setenta
e dois // já não palpita fagueiro // sabe que há morcegos de pesadas
olheiras // que há cabras malignas que há // cardumes de hienas
infiltradas // no vão da unha na alma (...) a vida anoitece provisória
// centuriões sentinelas // do Oiapoque ao Chuí. [30]
Para
que seja possível esta abordagem, o alerta de Fredric Jameson
sobre a necessidade de sempre historicizar [31] , de não deixar de lado as
transformações históricas como parte integrante da cultura e,
conseqüentemente, das manifestações culturais e literárias, é
importante tendo em vista a percepção de que nenhuma obra de arte
deve ter o seu “valor” em função da atemporaridade que alcançou
ou virá a alcançar.
Essa
historização salienta algo mais importante do que a sua (suposta)
permanência no tempo: a possibilidade de leitura dos conflitos
existentes em determinado momento histórico. Através das leituras
empreendidas na relação texto/contexto é que também se pode fazer
uma interpretação dos problemas sociais, políticos e econômicos
vivenciados, a fim de identificar, inclusive, a possibilidade
não da atemporaridade de uma produção, mas sim da permanência de certos problemas e conflitos,
permeados – na maioria das vezes – por situações de exclusão e
de opressão.
A
relação entre a identidade e as novas “realidades” culturais e
sociais que vêm se apresentando (e afirmando) como pertencentes
ao momento histórico vivido na contemporaneidade traz consigo
novos sujeitos definidos por uma coisa concreta: sua prática social [32] .
O espaço restrito, estreitamente
deixado para a produção literária que não àquela autorizada oficialmente,
de certa forma estimulou uma poesia que, segundo Campedelli [33] , era inquieta, anárquica,
mutante, não se filiando a nenhuma estética literária em particular.
Quanto a sua forma, os poemas canibalizaram
(a exemplo do primeiro tempo do Modernismo de 1922) alguns traços
já trabalhados em outros períodos, afirmando o exercício da liberdade
de expressão artística (que horas são? que dia é hoje? onde é
que eu tô? ????????????? perdi o metro. perdi o medo. acho graça. [34] ) e, principalmente, crítica.
Uma crítica ácida e desconcertante em razão da situação política
e social vivida.
A
atitude do poeta Chacal em buscar uma identidade não é uma tarefa
fácil. Sua construção passa pela elaboração de um perfil, de
um caráter opositor desde o início ao modelo de pessoa, cidadão
e poeta convencionais,
que pode ser rejeitado e considerado inferior e, ao mesmo tempo,
reconhecido como um elemento capaz de dizer as “verdades” necessárias,
pois “Ele viu todas as margens do rio // Ele é per/seguido //
Ele transou nas bôcas // Ele provou a água // Suja do rio.” [35] Quanto à sua inserção social, demonstra
a sua revolta com a sujeição ao poder através do ato de jogar
fora a sua identidade: “pra vocês basta isso de mim.” [36]
A dificuldade de aceitação desse indivíduo que “viu todas as margens”
é apresentada na sua Entrevista,
a curiosidade inicial é abafada pela constatação que ele não tem
mais nada a dizer a não ser afirmar sua posição perante uma sociedade
que não se importa com ele e com suas preocupações. Quando suas
respostas não fazem sentido, pelo menos dentro de uma noção de
correto e verdadeiro e coerente em um posicionamento oficial,
o repórter atua no apagamento da sua existência: “senhoras e senhores
telespectadores, nossos comerciais.”
[37] A desconstrução da situação política é apresentada
com a possibilidade de negação e de posicionamentos fora do suposto
esquema empreendido para a consolidação de regimes autoritários,
enfatizando o totalitarismo como algo em que as pessoas são articuladas
e corrompidas em função de um bem maior: o Estado.
Adorno [38] preocupou-se (assim como muitos teóricos no pós-guerra) com
essa questão, tentando explicar (achar a causa última) que levou
o homem a praticar o extermínio de milhões de pessoas na Segunda
Guerra. Salienta que, para que o horror de Auschwitz [39] não aconteça novamente, é preciso que as
pessoas se conscientizem do que ocorreu, que entendam os mecanismos
que provocaram a barbárie e possam lutar contra qualquer possibilidade
de regressão.
Se é praticamente impossível ao indivíduo fazer algo sobre os pressupostos
objetivos (fatores políticos, econômicos), existe a possibilidade
de concentrar os esforços em aspectos subjetivos (mecanismos psicológicos)
dos perseguidores, o que os levou a cometer tais atos, procurando
impedir que novamente os pratiquem na medida que se desperta a
consciência geral sobre estes mecanismos. Induzir a auto-reflexão
crítica é tarefa da educação, principalmente a da primeira infância,
pois ali se forma o caráter e as características sócio-morais.
Esse papel da escola é trabalhado por Chacal, ou melhor, por tacapau,
inicialmente no título Não
ato nem desato. Desarticulo, desestrutura o espaço de certo
e errado proposto pela educação tradicional. E essa é uma característica
marcante em relação à ideologia, uma fundamentação no discurso
que, segundo Bhabha [40] , passa a ser parte integrante de uma realidade,
nos estereótipos que são construídos e que sustentam uma determinada
função. A crítica, a desconstrução, a desarticulação dos pressupostos
é uma postura negada e desestimulada na maioria das vezes. Os
assuntos de interesse do aluno vagam entre o absurdo (mas o que
é absurdo) e a sexualidade que não fica na porta de entrada de
uma sala de aula “orlando manjava o absurdo e o rabo da professora.”
[41]
Mais
que isso, a tentativa de negação influencia o apagamento do momento
em que os acontecimentos se desenrolam. Apenas orlando possui
a curiosidade (e a atitude) de interceder perante os fatos, chegando
ao ponto de compreendê-los e julgar por si mesmo o seu caminho,
rejeitando tudo aquilo que , de repente, salta aos seus olhos:
“takapassou a mulher com o giz e abriu a porta. o homem colado
com as orelhas entregando saiu de banda. bandeira. sua suástica
caiu no chão, orlando viu o lance, achou nada. pisou na escada
e não aparece mais ali. pra quê?”
[42] Doido, irresponsável ou apenas um indivíduo com coragem
o suficiente para negar a massificação e o apagamento da opinião
protagonizado pela instituição escolar?
Esse
apagamento possui uma continuidade na violência que a própria
sociedade organizada e engrenada aos padrões uniformizantes da
coletividade estimula: “um disse: ‘vamos enforcar segunda-feira’.
(...) ‘... e todos os homens...’. o sangue lavou a avenida para
o desfile de uniformes mecânicos no dia sete.” [43]
Tendo
o acaso por ocaso na composição do seu auto-retrato, Waly Salomão
[44] elabora uma crítica mais debochada, utilizando uma escrita
anti-reticente viaja pelo tempo das ilusões perdidas, dos anos
e séculos que parecem pouco significar diante do malogrado ser
que vislumbra como ora sendo ele próprio, ora sendo a sociedade
que o cerca [45] .
Salienta
a relação das pessoas com a cultura através da adaptação ao cotidiano
de maneira simples e empobrecida na composição de uma imagem de
família; o preconceito ao homossexualismo, aos avanços das relações
sociais e ao seu posicionamento enquanto pessoa e artista: “Eu
sou a fonte do meu mal (...) Deformação do confinamento. O artista
trancado no quarto cagando bustica.” [46] . O individualismo e as (des)igualdades da sociedade burguesa
permeadas pelo sarcasmo do escritor que vê as elaborações empreendidas
pelas pessoas na tentativa de se constituírem enquanto sujeitos
sociais, salientam que “toda comunidade que procede de acordo
com um plano, age autoritariamente porque os indivíduos, a cada
momento, não reemitem um juízo próprio, mas confiam num pensamento
superior que, sem dúvida, pode ter-se formado com a sua cooperação.”
[47]
Por
isso, a necessidade de “Queimar etapas: criar coisas em que não
me reconheça – não como traição a um sonho anterior mas porque
as coisas criadas são estranhas a todo sonho, anterior a todo
o passado (...) Aqui desenho minha caligrafia declaro meu mal
decreto minha morte.”
[48] E a observação pertinente acerca da nova realidade
e dessa tentativa de compreensão do que pode ser incompreensível...
“quanto mais louco // lúcido estou.” [49]
[1] Trabalho apresentado no III Seminário Internacional
em Letras da UNIFRA
[2] Doutorando em Letras, UFSM, participante do Grupo
de Pesquisa Literatura e Autoritarismo.
[3] VÁTTIMO, Gianne. A sociedade transparente. Lisboa:
Ed. 70, 1989.
[4] O termo autonomia é aqui empregado com o intuito
de manter – ao menos em parte – a possibilidade de reflexão acerca
das transformações que vêm ocorrendo.
[5] Entende-se como "aplicação prática" a
apropriação dos seus estudos para a construção de uma nova ideologia,
que culminou com um regime totalitário de esquerda.
[6] FOUCAULT, M. The subject and power. In: Dreyfus & Rabinow (Eds.).
Michel Foucault: Beyond structuralism and hermeneutics. 2.
ed. Chicago: University of Chicago, 1983.
[7] Entrevista concedida ao analista político Vicente Adorno
no Jornal da Cultura da TVE (09/05/2003).
[8] BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito de História. In: _____.
Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1985.
[9] BENJAMIM, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
[10] BENJAMIN. Ob. cit, p. 198.
[11] ADORNO, Theodor Wiesengrund. Dialéctica negativa.
Madrid: Taurus, 1975.
[12] LENARDUZZI, Victor. Contra el “adornismo”. Sobre la recepción
de la escuela de Frankfurt en America Latina. Disponível
em www. cholonautas .edu.pe.
[13] Não se pode esquecer a influência do meio na
formação cultural do indivíduo, o que se está salientando é que
os posicionamentos críticos e questionadores devem ser uma prática
humana, adaptável às suas condições específicas (quer sejam históricas,
culturais, etc.), e não mais um conceito empreendido em favor
de mais uma atitude universalizante e totalizante do humano.
[14] O termo aqui adotado visa substituir sub-culturas
para abordar as produções artísticas que se situam fora do cânone.
[15] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio
de Janeiro: Zahar, 1999.
[16] ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
[17] FREITAG, Barbara & ROUANET, Sérgio Paulo (orgs.).
Habermas. São Paulo: Ática, 1993, p. 37
[18] FREITAG. Ob. cit. p. 38
[20] ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 228
[21] MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. 2.
ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
[22] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da
história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem
da identidade nacional. In: PESAVENTO, S.
J. & LEENHARDT, J. (orgs). Discurso histórico e narrativa
literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. p. 35.
[23] PESAVENTO. Ob. cit, p. 36.
[24] Esse reconhecimento é salientado por Mabel Moraña
em El boom del subalterno. Disponível em http// ensayo.
com.uga.edu/critica/teoria.
[25] VELOSO, Caetano. Podres Poderes. Guilherme
Araújo Produções Artísticas Ltda. Warner Chappell Edições Musicais
Ltda.
[26] VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Guilherme
Araújo Produções Artísticas Ltda. Warner Chappell Edições Musicais
Ltda.
[27] CACASO. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de & PEREIRA,
Carlos Alberto Messeder. Poesia Jovem – anos 70. São Paulo:
Abril, 1982, p. 66.
[28] O período da ditadura militar no Brasil teve
o seu acirramento a partir da promulgação do Ato Institucional
número 5 (AI-5), a 13 de dezembro de 1968, que decretava o fim
dos direitos civis e liberdades individuais, período este que
também ficou conhecido como “anos de chumbo”.
[29] Paulo Leminski (Curitiba, 1944, 1989) foi professor
de história e redação em cursos pré-vestibulares, diretor de criação
e redator de publicidade. Seus primeiros textos foram publicados
em revistas alternativas, antologias do tempo marginal: Qorpo
estranho, Muda, Código. Entre outros livros de poesia, todos
editados nos anos 80, há: Caprichos & relaxos, La vie en
close, Não fosse isso e era menos/não fosse tanto e era quase.
Extraído de CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura,
história & texto 3. São Paulo: Saraiva, 1999.
[30] Cacaso (Rio de Janeiro, 1944 – 1988) era o pseudônimo
do poeta, compositor e ensaísta Antonio Carlos de Brito. Professor
da UFRJ, fez sua estréia literária em 1967, com o volume de poesias
A palavra cerzida, em que ainda se notam influências de
Carlos Drummond de Andrade , João Cabral de Melo Neto, Cecília
Meireles, entre outros poetas. Com Grupo escolar, publicado
em 1970, mudam-se os eixos de sua poesia, agora mais marcada pela
presença de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Cacaso caminhou
para uma grande independência literária com Beijo na boca
e Segunda classe (este em co-autoria com Luís Olavo Fontes),
ambos de 1975. Agudo crítico literário, foi um dos primeiros ensaístas
a analisar a poesia marginal no estudo Tudo da minha terra
– bate papo sobre poesia marginal, de 1975. Extraído de CAMPEDELLI,
Samira Yousseff. Literatura, história & texto 3. São
Paulo: Saraiva, 1999.
[31] JAMESON, Fredric. O inconsciente político. São
Paulo: Ática, 1992.
[32] LACLAU, Ernest. Os novos movimentos sociais
e a pluralidade do social. Revista Brasileira de Ciências
Sociais n. 2, vol. 1, out. 1986.
[33] CAMPEDELLI. Ob. cit.
[34] CHACAL. Drops de Abril. Rio de Janeiro, 1972, p. 28.
[35] CHACAL. Ob. cit, p. 23.
[36] CHACAL. Ob. cit, p. 29.
[37] CHACAL. Ob. cit. p. 25.
[38] ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: ____. Educação
e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
[39] Nome do mais famoso campo de concentração nazista da
II Guerra Mundial.
[40] BHABHA, Homi. A questão do “outro”. Diferença,
discriminação e o discurso do colonialismo. In: HOLLANDA,
Heloísa Buarque de. (org.) Pós-modernismo e política. Rio
de Janeiro: Rocco, 1991.
[41] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[42] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[43] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[44] SALOMÃO, Waly. Self-Portrait. In: ____. Gigolô
de bibelôs ou surrupiador de souvenirs ou defeito de fábrica.
São Paulo: Brasiliense, 1983.
[45] SALOMÃO. Ob. cit. p. 34-36.
[46] SALOMÃO. Ob. cit. p. 38-39.
[47] HORKHEIMER, Max. Autoridade e Família. Teoria Crítica I.
São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo,
1990.
[48] SALOMÃO. Ob. cit. p. 43.
[49] CHACAL. Ob. cit. 34.