Capa | Editorial | Sumário | Apresentação   Revista nº 3
 

IDENTIDADE NEGATIVA, MARGINAL [1]

João Luis Pereira Ourique [2]

  Resumo

Tendo em vista o debate envolvendo a questão da identidade dentro de uma perspectiva que é, ao mesmo tempo, nova e problemática é que este trabalho se apresenta como uma possibilidade de leitura acerca da chamada “literatura marginal”.  Inseridos em um contexto de violência e autoritarismo, os poetas marginais procuraram, além de mostrar os novos sujeitos dentro de uma sociedade cada vez mais inconstante, denunciar a repressão que a sociedade brasileira estava sofrendo a partir do golpe de Estado de 1964.  Os novos sujeitos e a indefinição do conceito de identidade são temas tratados no decorrer do trabalho, salientando a necessidade do posicionamento crítico perante as transformações ocorridas através da releitura de textos de Theodor Adorno.

Uma das reflexões que instigam o debate sobre a identidade e, em relação a esta, as questões sobre a estética, é a noção sobre que período a sociedade está vivenciando: percebe-se uma continuidade da modernidade dentro dos padrões do Iluminismo ou a concepção de pós-modernidade vem a apresentar novos paradigmas visando esclarecer alguns problemas de interpretação da realidade?

A opinião de Gianne Vattimo [3] de que há aspectos em comum na percepção de um ser humano uno e harmônico e que essa percepção contribuiu para que diversas culturas fossem prejudicadas à luz de uma idealização, leva a uma reflexão e a posturas praticamente inquestionáveis.  Seguindo suas afirmações, a pós-modernidade é o momento da passagem da utopia para a heterotopia, da aceitação das diversas "sub-culturas" no papel de construção de uma sociedade que não é igualitária, mas que necessita aceitar o conflito e as diferenças.

Apesar disso, o ponto principal desta inserção não é o do questionamento se o momento presente (entendendo como contemporaneidade as transformações vividas a partir dos anos 50) insere-se em uma modernidade tardia ou em uma pós-modernidade, justificada, principalmente, pela explosão dos mass media.  Essa não priorização do tema não minimiza ou nega a validade deste debate, visa abordar os aspectos relativos à relação do indivíduo com a sociedade e, por fim, a concepção deste indivíduo.  Essa "inversão" do processo investigativo busca salientar a necessidade de retorno à valorização da individualidade e da subjetividade distantes (o máximo possível) do processo de inculcação de valores que culmina com a ausência da autonomia [4] de pensamento.

Assim, apresenta-se uma tentativa de resgatar alguns conceitos essenciais para auxiliarem nessas incursões, sendo que a base dessa estrutura é a Teoria Crítica, partindo, inicialmente da desconstrução ou da implosão dos conceitos para recriá-los, reelaborá-los numa concepção que busca o entendimento e a percepção da realidade.  Uma realidade que, segundo Nietzsche, é uma fábula na qual o homem se insere e busca uma harmonia que não existe, uma visão estreita de mundo percebida e tida como pronta e acabada, totalitária e vazia de significados além daqueles propostos como verdades absolutas.

Por sua vez, o que Marx apresenta como sendo uma forma de direcionar o pensamento social, bem como o seu comportamento enquanto sociedade, é a ideologia que fica escondida atrás de ilusões e mascaramentos da realidade, a ideologia que oculta os ideais de grupos dominantes.  Apesar dos posicionamentos políticos e da "aplicação prática" [5] dos seus estudos, o pensamento marxista influenciou definitivamente a concepção sobre a sociedade e as relações de poder exercidas entre as classes sociais que as compõem.  Aqui é importante enfatizar a problemática existente nessas relações, não no intuito de explicá-las, mas, de acordo com Foucault [6] , entender que uma sociedade sem estruturas de poder só pode ser uma abstração. 

Acrescenta ainda que dizer que não pode haver uma sociedade sem relações de poder não é dizer que aquelas que são estabelecidas são necessárias, havendo uma tarefa política permanente, inerente em toda a existência social de proceder à análise, elaboração e questionamento dessas relações.  Opinião essa compartilhada por José Saramago [7] que evidencia a necessidade do debate sobre a “democracia”, ou seja, de toda a experiência humana com o processo democrático, que deve ser questionado e discutido permanente e constantemente, sob pena de a sociedade sucumbir aos dogmas do autoritarismo e das leis reificadoras do mercado.

Surgem, então, dois estudos neste sentido e que representam um marco importante para esta abordagem.  As reflexões sobre o conceito de história [8] proposto por Walter Benjamin e os questionamentos presentes na sua abordagem sobre a Alegoria [9] são fundamentais para a continuidade do pensamento de Nietzsche no que tange a percepção de que não há verdades absolutas, e que sob uma leitura alegórica, o "falso brilho do totalitarismo se apaga". [10]

Sobre o conceito de história, a proposição de Benjamin busca questionar os valores e os paradigmas até então inquebrantáveis (hoje ainda presentes, apesar de passíveis de discussão) do documento histórico e do apagamento de culturas sob o jugo do poder dos vencedores, os mesmos que contam a história oficial.

Essa recuperação de alguns estudos é fundamental para o aprofundamento da questão proposta, de não refletir sobre qual teoria tem maior ou menor valor, relacionando-as de modo a buscar seu entendimento através da seguinte abordagem: pontos de vista.  O problema, portanto, não está na definição do que é modernidade, do que é pós-modernidade ou identidade, mas sim da inserção do indivíduo neste processo.

Enquanto o Iluminismo almejou explicações sobre a sociedade ideal, totalizando o homem como um ser em evolução, abominando o conflito e buscando sempre o consenso, as transformações ocorridas (também graças ao advento das ciências e da razão) vieram a relativizar o próprio pensamento sobre a coletividade, sobre suas relações, aceitando o conflito e a diferença como sendo parte integrante na "nova" ordem social.

Neste ponto da discussão é importante o resgate da obra de Theodor Adorno: a Dialética Negativa [11] .  Se as discussões sobre a pós-modernidade enfatizam as diferenças como sendo a essência da sociedade e a rejeição às verdades absolutas impostas à coletividade, então, os estudos de Adorno se inserem com validade e, inclusive, necessidade de releitura, salientando, para tanto, um afastamento dos aspectos afetivos que permearam sua inserção nos estudos Latino-Americanos, com vistas a alcançar a efetividade de suas posturas críticas [12] .  Essa nova leitura deve partir também de um ponto de vista específico, o do indivíduo.  A obra de Adorno encontra seu diferencial exatamente por esta vertente, pois não há uma preocupação em alocar o indivíduo em determinada sociedade ou grupo social, o que Adorno pretende é estimular a autonomia do pensamento, independentemente do meio social em que vive [13]

Para tanto, as obras de arte são elementos que ajudam a emancipação desse mesmo indivíduo; nesse sentido, a crítica que ele recebe de elitista em relação ao que seria obra de arte perde muito do seu significado, pois ele apresenta o seu ponto de vista para a emancipação do indivíduo dentro de uma sociedade de que faz parte, falando sobre o que conhece e sobre a sua cultura.  Também em seus estudos fica bem claro o seu não preconceito com as diversas culturas; se ele recorre a um ideal de arte, ele o faz sob o ponto de vista de uma pessoa e não da coletividade, criticando, portanto, a massificação do pensamento humano através da cultura industrial.

E esse também é o momento mais produtivo do debate protagonizado entre ele e Benjamin, pois enquanto o primeiro crê que a obra de arte deveria manter sua aura sem ser corrompida pela produção em massa, o outro acredita que a reprodutibilidade técnica das obras de arte levaria às pessoas a cultura. Mesmo nessa perspectiva, Adorno não pode ser tachado de preconceituoso quanto às produções artísticas periféricas [14] , pois é graças a estudos como os que ele propôs que o cânone pode ser questionado.

A identidade pode também ser percebida como a afirmação do indivíduo dentro de uma dialética que é capaz (ou pretende) de não só chegar ao consenso, mas também compreender as razões do outro, não apenas para aceitá-las, mas para conviver com a diferença.  A identidade, numa concepção desconstrutiva, negativa, evidencia uma indefinição, uma fragmentação que só pode ser percebida através da inconstância do homem moderno (ou pós-moderno), da passagem de uma mentalidade cognitiva para um pensamento pós-cognitivo [15] .

Outro aspecto muito interessante do pensamento de Adorno é a sua reflexão sobre a razão instrumental [16] que veio a enfrentar, afrontar e derrubar o mito e a mágica como verdade suprema e acaba, ela mesma, regredindo à mitologia, sendo o ideal do Iluminismo uma verdade mítica e dotada de uma dialética distante da emancipação do homem.

Mas se o homem, exilado da natureza e de si mesmo, necessita de salvação, tal salvação não pode ser pensada nas condições atuais (...) Não é possível hoje em dia imaginar a reconciliação do homem com a natureza, assim como não é possível imaginar um saber em que os conceitos sejam inteiramente adequados a seus objetos.  A utopia não pode ser conceitualizada nem na perspectiva da filosofia da História, nem na perspectiva da teoria do conhecimento. Qualquer tentativa de realizar a utopia histórica ou a utopia sistemática implicaria sucumbir à astúcia da razão iluminista [17] .

Ainda, segundo Habermas, o Iluminismo se julga capaz de concretizar todas as aspirações da humanidade através da razão instrumental sob a forma do positivismo.  Em oposição a este pensamento, a Teoria Crítica trabalha o postulado da não-identidade como sendo uma proposição mais adequada ao confronto com o autoconhecimento do Espírito Absoluto proveniente da síntese totalizante da dialética hegeliana.

Dessa forma, Adorno enfatiza a impossibilidade de realizar a utopia, afirmando que a busca da sua realização é inicialmente repressiva, levando, progressivamente, ao totalitarismo, tido por ele como sinônimo desta totalização do indivíduo e do espírito.

O que leva Adorno, invertendo a fórmula hegeliana, a afirmar que "das Ganze ist das Unwahre" - o todo é falso.  Pois tal totalização acabaria transformando-se numa paródia da totalização iluminista, ela mesma uma paródia da totalização utópica, tal como anunciada na tradição hegeliano-marxista [18] .

Habermas [19] lembra que a questão da não-identidade é retomada na Dialética Negativa, momento em que Adorno procura confrontar a busca da unidade, da totalidade, com a sua conseqüente anulação do sujeito, objetivando preservar uma espécie de possibilidade de pensar utilizando sua própria formação cultural sem, no entanto, sucumbir a ela.

Crer que a verdade de uma teoria é a mesma coisa que sua fecundidade é um erro.  Muitas pessoas parecem, no entanto, admitir o contrário disso.  Elas acham que a teoria tem tão pouca necessidade de encontrar aplicação no pensamento, que ela deveria antes dispensá-lo pura e simplesmente.  Elas interpretam toda declaração equivocadamente no sentido de uma definitiva profissão de fé, imperativo ou tabu.  Elas querem submeter-se à Idéia como se fora um Deus, ou atacá-la como se fora um ídolo.  O que lhes falta, em face dela, é a liberdade.  Mas é próprio da verdade o fato de que participamos dela enquanto sujeitos ativos.  Uma pessoa pode ouvir frases que são em si mesmas verdadeiras, mas só perceberá sua verdade na medida em que está pensando e continua a pensar, ao ouvi-las [20] .

Essa citação, proveniente da Dialética do Esclarecimento é uma resposta às posturas intelectualizantes perante aos conceitos elaborados e definidos como “verdades”.  A liberdade salientada não está preocupada em sua definição filosófica do que é liberdade, mas sim dentro de um ponto de vista preocupado em que haja espaço de inserção para a reflexão e, principalmente, a crítica e ao questionamento dos dogmas apresentados.

Assim, é interessante como uma aparente fuga do tema salientado no título (Identidade) pode ser retomada dentro de uma releitura da produção literária brasileira que se iniciou nos anos 60.  A literatura marginal pode ser entendida como um fenômeno não de identidade, mas identitário, ou seja, a busca de uma identificação [21] com uma realidade cultural e social que não é aquela entendida como o referencial da formação cultural do Brasil.

O isolamento do Brasil “cultural” em relação ao restante da América Latina, colocava-o como um elemento estranho, único e diferente.  Isso levava a crer que os problemas aqui vivenciados nada tinham a ver com a situação política e econômica de dominação, advindos de um processo histórico de colonização e apagamento das culturas locais.  Foi necessário que as dificuldades existentes no processo “democrático” brasileiro viessem à tona sob a sua forma mais cruel: a do acirramento do autoritarismo através da ditadura nos mesmos moldes dos vizinhos países.

Nos anos 60, as dificuldades para a concretização do nacional desenvolvimentismo e a falência dos regimes democráticos desembocaram numa original forma de pensar: articulava-se a teoria da dependência, de origem cepalina, que unificava num mesmo patamar de compreensão as nações latino-americanas.  Seria, enfim, a identidade latino-americana que se revelava no contexto brasileiro, irmanando toda a América em face das condições históricas semelhantes? [22]

A resposta da pergunta é a afirmação, ainda segundo Sandra Pesavento, de que a identidade nacional se apoiava na herança colonial, fazendo com que o ideal de nação se constituísse em função do outro imperialista.  Isso levou a maior parte da intelectualidade brasileira ao engajamento de esquerda “e os discursos histórico e literário manifestavam essa tendência, compondo o que se poderia chamar uma tendência social de representação da realidade brasileira”. [23]

Torna-se interessante, nessa perspectiva, comentar o movimento da Tropicália que teve Gilberto Gil e Caetano Veloso como seus mais conhecidos representantes.  Esse movimento pode ser entendido como um período de amadurecimento da relação do Brasil com a sua cultura, ou seja, de uma identificação enquanto país latino-americano e de sua distanciada participação de problemas que até então inexistiam.  Aprofundando um pouco esta questão, pode-se dizer, inclusive, que se tratou de uma não valorização de uma identidade em oposição, que negava o domínio imposto, mas de um reconhecimento enquanto indivíduos colonizados [24] , constituindo-se isso como um elemento vital para que as diferenças em relação a esta dominação pudessem/possam ser – ao menos – questionadas e enfrentadas no campo da ideologia.  Ou “será que nunca faremos senão confirmar // a incompetência da América católica // que sempre precisará de ridículos tiranos” [25] .  Ainda pode-se afirmar que a identidade está fragmentada e desconstituída de sua convencionalidade burocrática e também da sua identificação com a sociedade composta pela maioria desprovida de poder (oriundo da força, da educação, do dinheiro): “Por entre fotos e nomes // sem livros e sem fuzil // sem fome sem telefone // no coração do Brasil” [26] .

“Noite profunda.  Sono profundo.  Esperança rasa.” [27]   Com esse sentimento de indignação, o período de exceção vivido pelo Brasil, principalmente no período compreendido entre os anos de 1968 e 1978 [28] , externou uma preocupação crítica de oposição ao processo de dominação, censura e exclusão das diferenças – principalmente políticas, mas não se restringindo a estas – que nortearam a produção literária da época.  Enfim, a literatura marginal incorporou a luta contra a repressão, pois “en la lucha de clases // todas las armas son buenas // piedras // noches // poemas” [29] .  

Uma crítica ainda mais direta ao recrudescimento é apresentada no poema de Cacaso Logia e mitologia: “Meu coração // de mil e novecentos e setenta e dois // já não palpita fagueiro // sabe que há morcegos de pesadas olheiras // que há cabras malignas que há // cardumes de hienas infiltradas // no vão da unha na alma (...) a vida anoitece provisória // centuriões sentinelas // do Oiapoque ao Chuí. [30]

Para que seja possível esta abordagem, o alerta de Fredric Jameson sobre a necessidade de sempre historicizar [31] , de não deixar de lado as transformações históricas como parte integrante da cultura e, conseqüentemente, das manifestações culturais e literárias, é importante tendo em vista a percepção de que nenhuma obra de arte deve ter o seu “valor” em função da atemporaridade que alcançou ou virá a alcançar.

Essa historização salienta algo mais importante do que a sua (suposta) permanência no tempo: a possibilidade de leitura dos conflitos existentes em determinado momento histórico.  Através das leituras empreendidas na relação texto/contexto é que também se pode fazer uma interpretação dos problemas sociais, políticos e econômicos vivenciados, a fim de identificar, inclusive, a possibilidade não da atemporaridade de uma produção, mas sim da permanência de certos problemas e conflitos, permeados – na maioria das vezes – por situações de exclusão e de opressão.

A relação entre a identidade e as novas “realidades” culturais e sociais que vêm se apresentando (e afirmando) como pertencentes ao momento histórico vivido na contemporaneidade traz consigo novos sujeitos definidos por uma coisa concreta: sua prática social [32] .

O espaço restrito, estreitamente deixado para a produção literária que não àquela autorizada oficialmente, de certa forma estimulou uma poesia que, segundo Campedelli [33] , era inquieta, anárquica, mutante, não se filiando a nenhuma estética literária em particular.  Quanto a sua forma, os poemas canibalizaram (a exemplo do primeiro tempo do Modernismo de 1922) alguns traços já trabalhados em outros períodos, afirmando o exercício da liberdade de expressão artística (que horas são? que dia é hoje? onde é que eu tô? ????????????? perdi o metro. perdi o medo. acho graça. [34] ) e, principalmente, crítica.  Uma crítica ácida e desconcertante em razão da situação política e social vivida.

A atitude do poeta Chacal em buscar uma identidade não é uma tarefa fácil.  Sua construção passa pela elaboração de um perfil, de um caráter opositor desde o início ao modelo de pessoa, cidadão e poeta convencionais, que pode ser rejeitado e considerado inferior e, ao mesmo tempo, reconhecido como um elemento capaz de dizer as “verdades” necessárias, pois “Ele viu todas as margens do rio // Ele é per/seguido // Ele transou nas bôcas // Ele provou a água // Suja do rio.” [35]   Quanto à sua inserção social, demonstra a sua revolta com a sujeição ao poder através do ato de jogar fora a sua identidade: “pra vocês basta isso de mim.” [36]

A dificuldade de aceitação desse indivíduo que “viu todas as margens” é apresentada na sua Entrevista, a curiosidade inicial é abafada pela constatação que ele não tem mais nada a dizer a não ser afirmar sua posição perante uma sociedade que não se importa com ele e com suas preocupações.  Quando suas respostas não fazem sentido, pelo menos dentro de uma noção de correto e verdadeiro e coerente em um posicionamento oficial, o repórter atua no apagamento da sua existência: “senhoras e senhores telespectadores, nossos comerciais.” [37]   A desconstrução da situação política é apresentada com a possibilidade de negação e de posicionamentos fora do suposto esquema empreendido para a consolidação de regimes autoritários, enfatizando o totalitarismo como algo em que as pessoas são articuladas e corrompidas em função de um bem maior: o Estado. 

Adorno [38] preocupou-se (assim como muitos teóricos no pós-guerra) com essa questão, tentando explicar (achar a causa última) que levou o homem a praticar o extermínio de milhões de pessoas na Segunda Guerra. Salienta que, para que o horror de Auschwitz [39] não aconteça novamente, é preciso que as pessoas se conscientizem do que ocorreu, que entendam os mecanismos que provocaram a barbárie e possam lutar contra qualquer possibilidade de regressão. 

Se é praticamente impossível ao indivíduo fazer algo sobre os pressupostos objetivos (fatores políticos, econômicos), existe a possibilidade de concentrar os esforços em aspectos subjetivos (mecanismos psicológicos) dos perseguidores, o que os levou a cometer tais atos, procurando impedir que novamente os pratiquem na medida que se desperta a consciência geral sobre estes mecanismos. Induzir a auto-reflexão crítica é tarefa da educação, principalmente a da primeira infância, pois ali se forma o caráter e as características sócio-morais.

Esse papel da escola é trabalhado por Chacal, ou melhor, por tacapau, inicialmente no título Não ato nem desato. Desarticulo, desestrutura o espaço de certo e errado proposto pela educação tradicional.  E essa é uma característica marcante em relação à ideologia, uma fundamentação no discurso que, segundo Bhabha [40] , passa a ser parte integrante de uma realidade, nos estereótipos que são construídos e que sustentam uma determinada função.  A crítica, a desconstrução, a desarticulação dos pressupostos é uma postura negada e desestimulada na maioria das vezes.  Os assuntos de interesse do aluno vagam entre o absurdo (mas o que é absurdo) e a sexualidade que não fica na porta de entrada de uma sala de aula “orlando manjava o absurdo e o rabo da professora.” [41]

Mais que isso, a tentativa de negação influencia o apagamento do momento em que os acontecimentos se desenrolam.  Apenas orlando possui a curiosidade (e a atitude) de interceder perante os fatos, chegando ao ponto de compreendê-los e julgar por si mesmo o seu caminho, rejeitando tudo aquilo que , de repente, salta aos seus olhos: “takapassou a mulher com o giz e abriu a porta. o homem colado com as orelhas entregando saiu de banda. bandeira. sua suástica caiu no chão, orlando viu o lance, achou nada. pisou na escada e não aparece mais ali. pra quê?” [42]   Doido, irresponsável ou apenas um indivíduo com coragem o suficiente para negar a massificação e o apagamento da opinião protagonizado pela instituição escolar?

Esse apagamento possui uma continuidade na violência que a própria sociedade organizada e engrenada aos padrões uniformizantes da coletividade estimula: “um disse: ‘vamos enforcar segunda-feira’. (...) ‘... e todos os homens...’. o sangue lavou a avenida para o desfile de uniformes mecânicos no dia sete.” [43]  

Tendo o acaso por ocaso na composição do seu auto-retrato, Waly Salomão [44] elabora uma crítica mais debochada, utilizando uma escrita anti-reticente viaja pelo tempo das ilusões perdidas, dos anos e séculos que parecem pouco significar diante do malogrado ser que vislumbra como ora sendo ele próprio, ora sendo a sociedade que o cerca [45] .

Salienta a relação das pessoas com a cultura através da adaptação ao cotidiano de maneira simples e empobrecida na composição de uma imagem de família; o preconceito ao homossexualismo, aos avanços das relações sociais e ao seu posicionamento enquanto pessoa e artista: “Eu sou a fonte do meu mal (...) Deformação do confinamento. O artista trancado no quarto cagando bustica.” [46] . O individualismo e as (des)igualdades da sociedade burguesa permeadas pelo sarcasmo do escritor que vê as elaborações empreendidas pelas pessoas na tentativa de se constituírem enquanto sujeitos sociais, salientam que “toda comunidade que procede de acordo com um plano, age autoritariamente porque os indivíduos, a cada momento, não reemitem um juízo próprio, mas confiam num pensamento superior que, sem dúvida, pode ter-se formado com a sua cooperação.” [47]

Por isso, a necessidade de “Queimar etapas: criar coisas em que não me reconheça – não como traição a um sonho anterior mas porque as coisas criadas são estranhas a todo sonho, anterior a todo o passado (...) Aqui desenho minha caligrafia   declaro meu mal    decreto minha morte.” [48]   E a observação pertinente acerca da nova realidade e dessa tentativa de compreensão do que pode ser incompreensível... “quanto mais louco // lúcido estou.” [49]



[1] Trabalho apresentado no III Seminário Internacional em Letras da UNIFRA
[2] Doutorando em Letras, UFSM, participante do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo.
[3] VÁTTIMO, Gianne. A sociedade transparente. Lisboa: Ed. 70, 1989.
[4] O termo autonomia é aqui empregado com o intuito de manter – ao menos em parte – a possibilidade de reflexão acerca das transformações que vêm ocorrendo.
[5] Entende-se como "aplicação prática" a apropriação dos seus estudos para a construção de uma nova ideologia, que culminou com um regime totalitário de esquerda.
[6] FOUCAULT, M. The subject and power. In: Dreyfus & Rabinow (Eds.). Michel Foucault: Beyond structuralism and hermeneutics. 2. ed. Chicago: University of Chicago, 1983.
[7] Entrevista concedida ao analista político Vicente Adorno no Jornal da Cultura da TVE (09/05/2003).
[8] BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito de História. In: _____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
[9] BENJAMIM, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
[10] BENJAMIN. Ob. cit, p. 198.
[11] ADORNO, Theodor Wiesengrund. Dialéctica negativa. Madrid: Taurus, 1975.
[12] LENARDUZZI, Victor. Contra el “adornismo”. Sobre la recepción de la escuela de Frankfurt en America Latina. Disponível em www. cholonautas .edu.pe.
[13] Não se pode esquecer a influência do meio na formação cultural do indivíduo, o que se está salientando é que os posicionamentos críticos e questionadores devem ser uma prática humana, adaptável às suas condições específicas (quer sejam históricas, culturais, etc.), e não mais um conceito empreendido em favor de mais uma atitude universalizante e totalizante do humano.
[14] O termo aqui adotado visa substituir sub-culturas para abordar as produções artísticas que se situam fora do cânone.
[15] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[16] ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
[17] FREITAG, Barbara &  ROUANET, Sérgio Paulo (orgs.).  Habermas. São Paulo: Ática, 1993, p. 37
[18] FREITAG. Ob. cit. p. 38
[19] FREITAG. Ob cit.
[20] ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 228
[21] MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
[22] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: PESAVENTO, S. J. & LEENHARDT, J. (orgs). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. p. 35.
[23] PESAVENTO. Ob. cit, p. 36.
[24] Esse reconhecimento é salientado por Mabel Moraña em El boom del subalterno. Disponível em http// ensayo. com.uga.edu/critica/teoria.
[25] VELOSO, Caetano. Podres Poderes. Guilherme Araújo Produções Artísticas Ltda. Warner Chappell Edições Musicais Ltda.
[26] VELOSO, Caetano. Alegria, Alegria. Guilherme Araújo Produções Artísticas Ltda. Warner Chappell Edições Musicais Ltda.
[27] CACASO. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de & PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Poesia Jovem – anos 70. São Paulo: Abril, 1982, p. 66.
[28] O período da ditadura militar no Brasil teve o seu acirramento a partir da promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), a 13 de dezembro de 1968, que decretava o fim dos direitos civis e liberdades individuais, período este que também ficou conhecido como “anos de chumbo”.
[29] Paulo Leminski (Curitiba, 1944, 1989) foi professor de história e redação em cursos pré-vestibulares, diretor de criação e redator de publicidade.  Seus primeiros textos foram publicados em revistas alternativas, antologias do tempo marginal: Qorpo estranho, Muda, Código.  Entre outros livros de poesia, todos editados nos anos 80, há: Caprichos & relaxos, La vie en close, Não fosse isso e era menos/não fosse tanto e era quase. Extraído de CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura, história & texto 3. São Paulo: Saraiva, 1999.
[30] Cacaso (Rio de Janeiro, 1944 – 1988) era o pseudônimo do poeta, compositor e ensaísta Antonio Carlos de Brito. Professor da UFRJ, fez sua estréia literária em 1967, com o volume de poesias A palavra cerzida, em que ainda se notam influências de Carlos Drummond de Andrade , João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, entre outros poetas. Com Grupo escolar, publicado em 1970, mudam-se os eixos de sua poesia, agora mais marcada pela presença de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Cacaso caminhou para uma grande independência literária com Beijo na boca e Segunda classe (este em co-autoria com Luís Olavo Fontes), ambos de 1975. Agudo crítico literário, foi um dos primeiros ensaístas a analisar a poesia marginal no estudo Tudo da minha terra – bate papo sobre poesia marginal, de 1975. Extraído de CAMPEDELLI, Samira Yousseff. Literatura, história & texto 3. São Paulo: Saraiva, 1999.
[31] JAMESON, Fredric. O inconsciente político. São Paulo: Ática, 1992.
[32] LACLAU, Ernest. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. Revista Brasileira de Ciências Sociais n. 2, vol. 1, out. 1986.
[33] CAMPEDELLI. Ob. cit.
[34] CHACAL. Drops de Abril. Rio de Janeiro, 1972, p. 28.
[35] CHACAL. Ob. cit, p. 23.
[36] CHACAL. Ob. cit, p. 29.
[37] CHACAL. Ob. cit. p. 25.
[38] ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: ____. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
[39] Nome do mais famoso campo de concentração nazista da II Guerra Mundial.
[40] BHABHA, Homi. A questão do “outro”. Diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. (org.) Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
[41] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[42] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[43] CHACAL. Ob. cit, p. 26.
[44] SALOMÃO, Waly. Self-Portrait. In: ____. Gigolô de bibelôs ou surrupiador de souvenirs ou defeito de fábrica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
[45] SALOMÃO. Ob. cit. p. 34-36.
[46] SALOMÃO. Ob. cit. p. 38-39.
[47] HORKHEIMER, Max. Autoridade e Família. Teoria Crítica I. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.
[48] SALOMÃO. Ob. cit. p. 43.
[49] CHACAL. Ob. cit. 34.

 

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