LITERATURA
E AUTORITARISMO: O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA
MEMÓRIA COLETIVA EM CAIO FERNANDO ABREU [1]
LUZIANE BOEMO MOZZAQUATRO [2]
Com o objetivo
de analisar as relações entre Literatura e Autoritarismo, através
do estudo da representação literária de experiências ocorridas em
contexto autoritário, este artigo apresenta a análise e interpretação
de dois contos de Caio Fernando Abreu: Os Sobreviventes e Eu, Tu,
Ele, da obra Morangos Mofados. Nesse sentido, convém salientar que
este escritor foi um dos autores brasileiros que escreveu e publicou
durante a Ditadura Militar Brasileira. Através de sua obra, elaborada
nesse período e posteriormente, o autor retrata esse contexto histórico-social,
marcado por opressões coletivas, torturas, exílios, que desestabilizaram
não só as relações sociais entre os seres humanos, mas também atingiram
negativamente seus modos de vida e pensamento, impedindo várias
pessoas de expressar suas experiências e sentimentos plenamente,
as quais manifestam, em muitos casos, um discurso fragmentado e
confuso. O autor não ignorou esse fato e, ao compor suas obras,
adotou, em diversas situações, uma estrutura formal também fragmentada.
Essa atitude do escritor revela uma coerência maior entre as experiências
e a maneira de narrá-las, no sentido de que, se elas foram traumatizantes
e difíceis de assimilar, a fala dos personagens também estará marcada
por este aspecto complexo e degradante.
Tal postura
aderida por Abreu estabelece um diálogo com as idéias de Adorno
de que “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às
obras de arte como os problemas imanentes da sua forma” (Adorno,
1970: 16). Nesse sentido, Abreu, ao fazer uso da fragmentação
formal, estabelece uma conexão entre forma de composição e conteúdo
narrado, pois conserva, na própria estrutura da obra literária,
os conflitos e antagonismos sociais não solucionados, apontando
a necessidade estética de inovações formais por parte dos escritores
que abordam temas ligados à repressão coletiva e individual.
No que tange
a esse aspecto da fragmentação formal como um indício de conflitos
não superados, os contos Os Sobreviventes e Eu, Tu, Ele mostram-se
exemplares. Em ambos são freqüentes a elaboração de períodos incompletos
e o uso inadequado das vírgulas e dos pontos finais, conotando
o rompimento com a linguagem convencional, considerada limitada
frente à problemática
abordada. As passagens a seguir servem de comprovação para essa
afirmativa: você
vai curtir os seus nativos em Sri Lanka depois me manda um cartão-postal
contando qualquer coisa como ontem à noite (...), mas ontem na
beira do rio, sem planejar nada, de repente, sabe, por acaso,
encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein?
(Os Sobreviventes, 1995: 19);
Quanto à moça,
continuava a vir, dizia sempre que quando a Lua transitasse por
Aquário. Mas eu nunca soube de constelações...” (Eu, Tu, Ele,
1995: 58). Esses
trechos, construídos de forma fragmentada, indicam que o pensamento
dos protagonistas de ambos os contos não está organizado, o que
os conduz a formulações imprecisas e incoerentes, revelando a
dificuldade de entendimento e expressão do que foi vivido.
A
fragmentação também é visível no nível semântico, havendo a sobreposição
de assuntos, sem marcação lingüística para fazer o elo entre um
e outro, revelando a inquietação psicológica do personagem, cuja
fala é conduzida pelo fluxo descontínuo e perturbado de sua consciência:
“Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração
com teus dedos frios, eu tive tanto amor um dia, ela pára e pede,
preciso tanto tanto tanto, cara, eles não me permitiram ser a
coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e ela fica subitamente
pequenina apertada contra meu peito...” (Os Sobreviventes, 1995:
21). Ao se apresentar a cena da conversa entre os dois personagens
do conto, a fala de um é entrecortada por comentários do outro,
impedindo a continuação lógica e coerente do discurso. Tal aspecto
é facilmente explicado. Como os contos são narrados em primeira
pessoa, eles são conduzidos pelas falas e lembranças fragmentadas
dos personagens e, nesse sentido, revelam que, devido ao meio
fortemente opressor enfrentado, há dificuldade de comunicação
linear e objetiva de suas experiências e sentimentos.
Nessa
perspectiva, Abreu revela a impossibilidade de uma narração “estável”
que suponha que acontecimentos como o da Ditadura Militar estejam
sob controle na mente dos que a vivenciaram. Exige-se antes um
arranjo formal que problematize e não tente mascarar esses conflitos
sociais, fato este comum às ciências sociais, que fazem uma análise
descritiva e que conceda respaldo às conquistas dos vencedores,
sem considerar os motivos que determinaram uma luta desigual e
injusta.
Os
dois contos estudados nesta pesquisa são marcados pela angústia
de personagens que efetuam uma avaliação crítica de seus sonhos,
projetos e posicionamentos político-ideológicos num contexto que
estava marcado pelo horror, real e/ou imaginário. Nesse sentido,
revelando-se contrário aos princípios autoritários do Governo
de seu tempo, Abreu apresenta personagens que representam os indivíduos
que viveram o contexto da Ditadura e foram alvos de torturas,
humilhações e censura, não conseguindo entender o que realmente
estava acontecendo e por que estava ocorrendo.
Escrito predominantemente
em primeira pessoa, com alguns comentários que entrecortam a narrativa,
Os Sobreviventes desenrola-se em torno do diálogo entre dois personagens
(homem e mulher) que refletem sobre suas angústias, seus sonhos
e desejos frustrados: “Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que
sim, claaaaaaaro, tentamos tudo (...) Realmente tentamos, mas
foi uma bosta” (Abreu, 1995: 18). Através dessa passagem, depreende-se
que o sentimento de derrota e o sofrimento envolveram os personagens,
vítimas de um contexto opressor e limitador das ações e pensamento.
O que permanece, como se pode notar, é a desilusão extrema em
relação à vida e a sensação de que estão desamparados: “nos perdemos
no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais
carona e a noite já vem chegando” (Abreu, 1995: 22). A referência
à chegada da noite reforça a idéia de solidão, de ausência de
uma saída para seus conflitos.
Abreu, ao
expor essa situação, pode ser considerado uma voz dentro de um
vasto repertório de vozes de uma geração que busca expor as solidões,
angústias, contradições, o mofo de uma era (Arenas, 1992). Suas
personagens, em Os Sobreviventes, de acordo com Arenas (1992:
56), “são sobreviventes duma geração que lutou contra a ditadura,
que queria uma ruptura com o passado, que acreditou em tudo, e
que, nos anos 80, só conserva ‘um gosto azedo na boca’, ‘um nó
no peito’”. Essa situação pode ser exemplificada pela seguinte
passagem:ai
que gracinha nossos livros de Marx, depois Marcuse, depois Reich
(...) embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas
idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50,
em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes
the sun, little darling, 70 em Nova Iorque dançando disco-music
no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa porca sem conseguir
engolir nem cuspir fora nem esquecer esse gosto azedo na boca
(Abreu, 1995: 19)
No início
do conto, os personagens elegem um lugar, conhecido ou não por
eles, onde se possa agir conforme os impulsos e desejos individuais.
Conforme pistas propostas pelo texto, esses personagens (homem
e mulher) são homossexuais: “o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses
o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um
casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf...” (Os Sobreviventes,
1995: 18). Considerando essa situação e o contexto declaradamente
autoritário e conservador em que estavam inseridos, conclui-se
que os personagens não podiam deixar transparecer seus sentimentos
homossexuais, precisando encontrar, então, um refúgio para o viver
intensamente, sem ser punido.
Sentimentos
e atitudes reprimidas fizeram com que os personagens tentassem
de tudo para superar o sofrimento e a opressão vividos:
Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise
drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia
patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó
no peito, agora faço o quê? não é plágio do Pessoa não, mas em
cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe
Oxum, outra de Jesusinho, um pôster de Freud, às vezes acendo
vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal
grosso nos cantos. (Os Sobreviventes, 1995: 19)
A nomeação
dessas inúmeras atividades realizadas pelo personagem para se
libertar desse contexto de apreensão e de sufocamento conota o
quanto as práticas autoritárias influenciam na vida dos indivíduos,
impedindo-os de agir e formular caminhos alternativos de superação
à ordem dominante. A ausência de vírgulas, nas três primeiras
linhas da passagem anterior,
serve para equiparar, no nível sintático, o que ocorre na mente
do personagem, vítima desse contexto opressor. As palavras foram
citadas sem separação gráfica, pois obedecem ao fluxo conturbado
e agitado do pensamento do personagem, que fala o que vem à sua
mente.
A solução
para esse obstáculo que, conforme os próprios personagens, seria
a fuga para ‘Sri Lanka’ já é praticamente deixado de lado, no
final do conto, quando se afirma que eles se perderam e ninguém
pode mais ajudar: “nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos
mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando”
(Os Sobreviventes, 1995: 22). Esse aspecto reforça o que já foi
dito anteriormente de que os personagens não conseguem formular
perspectivas coletivas de superação desse ambiente de tortura
física e principalmente psicológica que desestabiliza e, até mesmo
paralisa e inibe qualquer tentativa de inversão da ordem vigente.
Nessa mesma linha
de raciocínio, o conto Eu, Tu, Ele, estruturado em primeira pessoa,
apresenta um indivíduo que narra sua história de modo confuso e
com várias lacunas, dificultando a compreensão do que é relatado.
Assim como Os Sobreviventes, o conto Eu, Tu,
Ele
apresenta um personagem cuja constituição psicológica está totalmente
perturbada, resultando na vulnerabilidade de sua própria identidade,
pois o indivíduo tem dificuldade de estabelecer uma identidade
fixa: ora aparece como “sendo três pessoas distintas nele mesmo”,
ora usa dos outros dois para poder compreender-se e compreender
os outros: “pois não nos separamos, os três. Quando me julgo
fora, estou dentro. E quando me suponho dentro, estou fora. De
ti ou dele, de mim em mim, tríplice engastado...” (Eu, Tu, Ele,
1995: 59)
O título Eu,
Tu, Ele remete para a idéia de divisão, fazendo supor que haverá
mais de uma perspectiva de opinião, que existirá mais de um olhar
sobre o mundo. Mas não é isso o que se tem, e sim, três indivíduos
sem nenhuma nomeação, sendo apenas indicados pelas três pessoas
do discurso, os quais integrarão um único ser, o eu. Este aspecto
pode apontar um primeiro indício de crise existencial, ninguém
tem um nome que é só seu ou experiências estabelecidas como suas,
mas partilham dos mesmos sofrimentos, sendo um sujeito o prolongamento
do outro. O próprio fato de os personagens desse conto, como o
de Os Sobreviventes, serem anônimos sugere que as experiências
de opressão e autoritarismo foram coletivas. A atribuição de
um nome aos personagens os individualizaria e conseqüentemente,
particularizaria
também as experiências, diminuindo-se ou até mesmo perdendo-se
a idéia de que estas foram comuns a toda uma população. Além disso,
é a partir do diálogo entre essas vozes anônimas exploradas por
Abreu, que os personagens rompem as fronteiras do universo ficcional
e passam a questionar o tempo e a sociedade em que estão inseridos
e a representar o drama
coletivo das vítimas da Ditadura.
O verbo tatear,
usado no início do conto, significa tocar, apalpar em coisas,
objetos, para se guiar, o que indica que o sujeito-narrador, assim
como o tu e o ele não conseguem andar livremente, devendo antes
sondar o lugar onde estão, para poder seguir com mais segurança
e sem risco de vida: “Tateio, tateias, tateia” (Abreu, 1995: 54).
Por meio dessa referência ao ato de tatear, problematiza-se, então,
a necessidade constante de se estar atento ao
que acontece ou está à volta.
No segmento
a seguir: “eu sinto nojo (...) do interior das caras que transparece
nas veiazinhas” (Abreu, 1995: 55), percebe-se que há uma repugnância
do sujeito-narrador em relação às pessoas a sua volta. Em complemento
a esse receio, o eu declara “sinto que transpareço nas veiazinhas
dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para
fora, entre as coisas pontudas” (Abreu, 1995: 55). Nesse sentido,
observando o meio hostil em que vive, sente medo de ser lançado
na realidade cruel, desestruturadora do sujeito. Num contexto
mais amplo, como o da Ditadura iniciada em 1964, pode-se afirmar
que esse temor do personagem é semelhante ao de toda a população
que viveu nesse contexto opressor, em que todas as pessoas estavam
constantemente sob os olhares dos militares e sob o risco de serem
presas, torturadas ou exiladas por qualquer ‘pisada em falso’.
A desestruturação
psicológica do sujeito não permitia uma definição exata do que
vivenciava, via ou sentia e a descrição que apresenta da paisagem
vista da janela de um trem é um exemplo dessa inconstância das
coisas para ele, onde tudo se funde, se mistura, sem traços
próprios e definidos: Mas
do interior do trem, nunca é fixa a paisagem. Os pés de ipê coloridos
misturam-se às paredes de concreto e as paredes de concreto às
ruazinhas de casas desbotadas e as ruazinhas de casas desbotadas
às caras das lavadeiras na beira do rio, e desta distância essas
caras não são móveis nem vivas, mas sem feições (...) Há um excesso
de cores e de formas pelo mundo. E tudo vibra pulsátil, fremindo”
(Abreu, 1995: 55).
As coisas
que vê nessa paisagem se modificam, juntam-se a umas imagens ao
mesmo tempo em que se separam de outras, nada compõe uma imagem
definida, mas instável, sem uma visualização determinada. Esse
aspecto pode ser atribuído, como já foi dito, ao próprio caráter
com que os fatos, a vida se apresenta ao sujeito. Tem-se um conjunto
de acontecimentos, experiências que se processam com tal intensidade
e simultaneidade, que não garantem possibilidade de assimilação
e organização por parte do ser que as vive.
Somada a esses
fatos, há a insinuação de um relacionamento homossexual, o qual
encontra preconceito por parte do suposto envolvido: “contornando
com as coxas abertas o tronco e a bunda do homem pudesse assim
senti-lo dentro de mim, de ti ou dele, como a fêmea deve sentir
seu macho, cara a cara, jamais como um homem recebe a outro homem”
(Abreu, 1995: 56). Seguindo essa linha de raciocínio, o sujeito
está se embatendo nessa indeterminação de quem realmente teve
esse envolvimento homossexual, como uma forma de não estar sozinho
contra esse desejo erótico tido como impuro e condenável pela
sociedade tradicional. A ânsia desse relacionamento era tanta,
que ele não conseguia ou não queria definir a pessoa envolvida.
Ele declara ainda: “Atrás da janela dele, eu olhava sem me permitir.
Mas nosso orgasmo era o mesmo, e éramos então um só os três” (Abreu,
1995: 56). As três pessoas reduzidas a uma única, portadoras dos
mesmos sentimentos, dos mesmos desejos.
O discurso
do eu faz pressupor que este tem um possível envolvimento amoroso
com o ele dessa narrativa. Mesmo estando juntos, o eu não se porta
do mesmo modo do que o ele e, além disso, tenta desmascarar o
que o outro tem de ruim. Porém, este, numa atitude brutal, o impede:
“A cada tentativa, ele me pressente e me rechaça, ele me empurra
para o fundo de si para que eu não o desmascare. E me rouba a
voz, e me leva o gesto, fazendo com que me cale e me imobilize
impotente entre as pontas duras das quais ele se desvia, porco
bailarino capaz de todas as baixezas pelo solo principal” (Abreu,
1995: 57). Esta passagem pode ser caracterizada como um forte
exemplo da censura, da negação dos direitos humanos, da liberdade
de expressão que atormentava os brasileiros nos anos 60 e 70.
A cada tentativa de mudança ou ação contestatória, estabelecia-se
um emaranhado de barreiras para a imobilização do povo.
Nessa confusão
de sentimentos e indefinições de atitudes, surge a figura de uma
moça que, segundo o narrador, adota uma postura violenta em relação
a um animal indefeso, agredindo-o até a morte. Ela estava sendo
perseguida por um homem que talvez fosse fazer com
ela o mesmo que esta fez ao animal: sem
dentes, rasgado, fragmentos de vômito endurecido grudados nos
pêlos do peito, o homem a perseguia. Antes que a tocasse, ela
encontrou o animalzinho branco, de focinho rosado, e apanhando
um pedaço de pau bateu, bateu e bateu até que o bicho se tornasse
um mingau de sangue e ossos partidos e pêlos claros onde boiava
um par de olhos abertos que não morriam (Abreu, 1995: 59).
Através da
elaboração sutil dessa cena de perseguição a uma jovem e da brutalidade
desta contra um animalzinho indefeso, problematiza-se a questão
da reprodução, em ambientes ‘familiares’, da violência exercida
pelas estruturas de macropoder da sociedade. Além disso, revela
conotativamente a violência exacerbada contra aqueles que supostamente
sejam considerados adversos a qualquer determinação imposta pelo
Governo.
Assim como
Os Sobreviventes, o conto Eu, Tu, Ele finaliza-se sem que haja
uma solução para o problema da opressão e do autoritarismo
sem controle: “Mas – sei, sabes, sabemos (...). E quase não temos
tempo” (Eu, Tu,Ele, 1995: 61). Essa passagem sugere a fuga do
tempo e, conseqüentemente, a impossibilidade de qualquer reversão
do que já foi instalado há tempo e tem total poder de comando
sobre os indivíduos.
Através da
leitura desses dois contos, percebe-se, portanto, que Abreu demonstra
uma consciência política em meio ao impacto da experiência violenta
e opressiva do contexto social, expressando sua posição político-ideológica
de contestação ao sistema e crítica às formas do exercício do
poder e da repressão. Desse modo, através de sua obra, o autor
promove o que Sosnowski já havia assinalado como atitude necessária
em relação ao contexto ditatorial, ou seja, Abreu apresenta a
elaboração “das perdas desses anos como dolo”, sem colaborar com
a política conservadora que busca meios de conduzir ao esquecimento
o que se passou.
A produção de Abreu auxilia, portanto, na construção de uma memória
coletiva sobre um momento singular da história brasileira, conduzindo
a uma reflexão comprometida e séria sobre esse período.
Conforme Jacques
Le Goff, os esquecimentos e os silêncios da história revelam os
mecanismos de manipulação da memória coletiva, preocupação esta
dos indivíduos que dominaram e dominam a sociedade ao longo da
história. Esses apagamentos são estabelecidos, desse modo, pelos
donos do poder que promovem meios de ocultar as relações autoritárias
e preconceituosas estabelecidas entre os indivíduos. Em caminho
contrário, Abreu garante a elaboração de uma memória coletiva
que busca a “libertação e não a servidão dos homens”,
uma vez que possibilita a discussão sobre aspectos mascarados
que denunciam essa situação, vista sob o ponto de vista dos oprimidos
e não daquele divulgado pelos opressores.
Por meio de
uma linguagem metafórica e sem descuidar do valor estético, Abreu
revela o Brasil em fragmentos, esmagado sob a opressão, apontando
aspectos mascarados da história. A intensa repressão e o medo
que imobilizaram e calaram as pessoas, principalmente durante
as duas décadas de Ditadura, são questionados metaforicamente
na produção de Abreu através da fala e da atitude de personagens
em conflito e que não conseguem compreender por que tudo aquilo
estava acontecendo.
Nessa perspectiva,
Abreu pode ser considerado como pertencente ao grupo de escritores
brasileiros que elaboraram obras de contestação aos regimes autoritários
e às práticas repressivas, concedendo voz àqueles cujo direito
à fala e ao protesto foi negado no decorrer
da história. Em complemento a essa afirmação, pode-se dizer que
Abreu afasta qualquer risco de banalização e ocultamento das experiências
de violência e autoritarismo, apontando a necessidade de uma memória
coletiva que não se configure como manipuladora de opiniões e
comportamentos.
Para finalizar,
é importante destacar que a forma de composição e o conteúdo,
nesses dois contos, estão estreitamente ligados, assegurando a
perfeita representação do estado psicológico em que se encontram
os sujeitos-narradores (paradigmas de toda uma sociedade oprimida
pelas atrocidades de um governo tirano como foi o dos que governaram
o país entre 1964 e 1985), em meio a ambientes repressores e preconceituosos.
Referências
Bibliográficas
ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. 9.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
ARENAS, Fernando. Estar entre o lixo e a esperança: Morangos Mofados
de Caio Fernando Abreu. Brasil/ Brazil. Ano 5, n.8, 1992.
ADORNO,
Theodor. Teoria Estética. São Paulo: Edições 70 – Martins Fontes,
1982.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: UNICAMP, 1996.
SOSNOWSKI, Saul. Contra os consumidores do esquecimento. In: SOSNOWSKI,
Saul & SCHWRTZ (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São
Paulo: EdUSP, 1994.
[1] Trabalho orientado pela Profa. Dra. Rosani K. Umbach (UFSM).
[2] Participante do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo, apoiado
pelo CNPq.