TEXTO
LITERÁRIO E CONTEXTO SOCIAL: O
ENTRECRUZAR
DE FRONTEIRAS, NA OBRA A ROSA DO POVO, DE CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
Maria
Isabel Londero1
RESUMO
Este
trabalho tem como objetivo demonstrar a função social de um texto
literário, bem como de seu escritor, procurando ressaltar a importância
da relação entre forma poética e estrutura social. Definimos, no
âmbito desta reflexão, como objeto de estudo os poemas José
e Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade, ambos da obra
A Rosa do Povo, publicada em 1945. Buscamos apresentar uma
proposta de análise e de interpretação dos textos, a fim de demonstrar
a consciência política de Drummond em meio ao impacto da experiência
violenta e opressiva do Estado Novo no contexto brasileiro e da
Segunda Guerra no contexto mundial.
PALAVRAS-CHAVE:
Texto, contexto, autoritarismo.
INTRODUÇÃO
Nos
trabalhos mais recentes sobre Literatura, a articulação entre o
discurso literário e o contexto social – o espaço biográfico-psicológico
e existencial do escritor – surge como elemento indispensável para
a compreensão da obra literária. Vários estudos ressaltam a importância
do contexto e sua significação para um entendimento mais amplo da
mensagem que o artista tenta transmitir em seus escritos.
Seguindo
nesta perspectiva, este trabalho tem como objetivo analisar alguns
poemas de Carlos Drummond de Andrade, procurando relacioná-los com
o contexto histórico-social do Brasil e do mundo. Tentar-se-á chamar
atenção para a função social da obra e do escritor, bem como, demonstrar
a relevância da relação entre forma poética e estrutura social.
1 Relações
entre literatura e sociedade
Cabe,
de início, salientar que a função social do escritor é mostrar o
seu mundo, dentro do mundo em que lhe foi dado viver. Para isto,
o intelectual utiliza-se de palavras que figuram como seu modo de
ação. No entanto, a tarefa de representar a realidade nem sempre
é fácil, pois a escrita literária é muitas vezes condicionada pelo
ambiente social, o que acaba inibindo o seu valor ideológico.
Faz-se
necessário, também, ressaltar a complexidade que existe nas relações
entre literatura e sociedade. Tais relações levam em conta, não
só, o conteúdo social da obra, mas também sua influência na sociedade;
a questão dos leitores; a sociologia do escritor, que verifica o
meio e o tempo em que viveu e compôs sua obra. Neste sentido, o
teórico Georg Lukács (1968: 15) ressalta a contribuição do elemento
social na constituição da literatura. Com respaldo em idéias marxistas,
ele expõe:
A
gênese e o desenvolvimento da literatura são parte do processo histórico
geral da sociedade. A essência e o valor estético das obras literárias,
bem como a influência exercida por elas, constituem parte daquele
processo geral e unitário através do qual o homem faz seu o mundo
pela sua própria consciência.
Outro
elemento que se reflete de maneira significativa no momento da produção
de um texto é a história. Sabe-se que determinados aspectos históricos
podem influenciar a produção literária de um certo período. Ao tratar
da relação entre literatura e história, Antonio Candido (Apud Chaves,
1999: 09) refere-se à fronteira que se estabelece entre estes dois
campos do conhecimento e atesta que
Só
a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que
explicava pelos fatores externos, quanto o outro norteado pela convicção
de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como
momentos necessários do processo interpretativo. (...) o externo
(no caso, o social) importa não como significado, mas como elemento
que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se,
portanto, interno.
A
escolha desses poemas, portanto, não ocorre de forma gratuita. É,
sim, decorrência de uma atitude consciente, que visa justamente
demonstrar a importância de Drummond dentro da literatura brasileira,
já que tais poemas são exemplos marcantes de uma postura crítica,
participante e engajada socialmente.
A
produção drummondiana representa a realidade de forma não idealizada.
A ênfase de engajamento de seus poemas nas características contraproducentes
da época de sua construção exibe a tendência de o escritor ater-se
a seu tempo histórico. Neste sentido, Francisco Iglêsias (1990:
03) num artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo,
em 1990, expõe o seguinte:
Seu
rico conteúdo seria a chave da alta compreensão histórica desse
poeta que compreendeu o homem e a realidade social, transfigurando-a,
pela beleza artística, em visão nada vulgar ou banal, mas antes
superior como inteligência e penetração sensível.
A
leitura dos poemas que seguem permite verificar a afirmação explícita
de que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação
na vida e como forma de representação histórico-social.
JOSÉ
- E agora,
José?
- A festa
acabou,
- a luz apagou
- o povo sumiu,
- a noite esfriou,
- e agora,
José?
- e agora,
você?
- você que
é sem nome,
- que zomba
dos outros,
- você que
faz versos,
- que ama,
protesta?
- e agora,
José?
- Está sem
mulher,
- está sem
discurso,
- está sem
carinho,
- já não pode
beber,
- já não pode
fumar,
- cuspir já
não pode,
- a noite
esfriou,
- o dia não
veio,
- o bonde não
veio,
- o riso não
veio,
- não veio
a utopia
- e tudo acabou
- e tudo fugiu
- e tudo mofou,
- e agora,
José?
- E agora,
José?
- Sua doce
palavra,
- seu instante
de febre,
- sua gula
e jejum,
- sua biblioteca,
- sua lavra
de ouro,
- seu terno
de vidro,
- sua incoerência,
- seu ódio
– e agora?
- Com a chave
na mão
- quer abrir
a porta,
- não existe
porta,
- quer morrer
no mar,
- mas o mar
secou;
- quer ir
para Minas,
- minas não
há mais.
- José, e agora?
- Se você gritasse,
- se você gemesse,
- se você
tocasse
- a valsa vienense,
- se você dormisse,
- se você cansasse,
- se você morresse...
- Mas você
não morre,
- você é duro,
José!
- Sozinho no
escuro
- qual bicho-do-mato,
- sem teologia,
- sem parede
nua
- para se encostar,
- sem cavalo
preto
- que fuja
a galope,
- você marcha,
José!
- José, para
onde?
Em
conformidade com a idéia de que texto e contexto devem estar interligados,
na análise do poema José deve-se levar em consideração alguns
traços sociológicos que contribuem para a atribuição de sentido
ao texto. Cabe aqui lembrar que o poema está intimamente relacionado
a acontecimentos históricos, os quais projetam conseqüências que
repercutem no ambiente nacional e deixam marcas profundas na sociedade.
O
poema foi publicado em 1942, ano de atuação do Estado Novo no Brasil.
Desse fato decorre uma série de acontecimentos políticos e econômicos
que irão assinalar a sociedade brasileira, tais como a repressão
política; o preconceito institucional; a precariedade das condições
de trabalho; a modernização industrial; a implantação e a afirmação
de condutas autoritárias; a urbanização dispersiva. Esses acontecimentos
tornam-se agravantes da situação de miséria enfrentada pela população
e resultaram em uma disjuntura social. Desta, originou-se, principalmente,
a desigualdade de privilégios concedidos à sociedade, intensificando,
ainda mais, a formação de classes opressoras e oprimidas.
A
figura de José vem nesse poema, justamente como representação de
um problema coletivo. O poema todo está centrado na reflexão sobre
a existência de José que resiste e segue vivendo. Começa e termina
de forma interrogativa o que vem enfatizar o problema do direcionamento
da existência.
Nos
5 primeiros versos tem-se a sensação de perda, de esvaziamento,
que é transmitida através de uma seqüência de imagens que denotam
uma situação sem saída.
O
verso 7 apresenta-se de maneira ambígua. Drummond utiliza-se desse
recurso com o intuito de chamar atenção do leitor, pois diante desta
estratégia pode-se inferir que José tornou-se o interlocutor, ou
então, que o leitor se identifica como José, sendo que tudo que
é dito de José pode ser dito do leitor.
O caráter genérico
do nome José, que serviria então para designar o ser humano
em geral, transmite uma idéia de indiferença diante daquilo que não
tem nome (v.8). Ou seja, José é apenas mais um na multidão.
Nos
versos 13 a 18 o sujeito encontra-se sem condições de expressão.
É assinalada a carência e a solidão vivenciadas pelo indivíduo que
está impedido de seguir certos impulsos. O uso reiterado das expressões
sem e não contribuem para reforçar a noção de carência
que define a atmosfera do poema.
Os
versos 19 a 27 trazem novamente a idéia de esvaziamento através
do uso da expressão não veio. Esta idéia é enfatizada pela
repetição do vocábulo tudo que denota generalização do vazio.
Na
seqüência dos versos registra-se a inutilidade das tentativas de
José para resolver seu problema. Nem os versos, nem o delírio, nem
as leituras, nem a riqueza, nem a revolta, metaforizadas no texto,
se mostraram suficientes para vencer a crise.
Para
expressar a precariedade da existência de José, Drummond utiliza-se
de expressões sem continuidade semântica, frases coordenativas,
nas quais não há uma ligação das idéias entre si. Os termos não
apresentam coerência do ponto de vista lógico. Nestes versos o sujeito
remete ao passado e faz referências de forma fragmentária, pois
todos os referenciais foram destruídos, o que fez com que se perdesse
o sentido da existência.
Nos
versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo
compondo orações condicionais, anuncia a possibilidade de mudança
que o verso seguinte desmente. Isso vem evidenciar que não há resolução
para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo morrer vale
a pena, pois não resolveria o problema.
O
uso do verbo marcha expressa a única reação de José, que,
sem ter nenhuma forma de apoio, nenhuma forma de liberdade, privado
de qualquer recurso – parede nua, teologia, cavalo
preto – recorre ao seu próprio corpo.
A
riqueza de detalhes, o uso de linguagem subjetiva, a descontinuidade
temática, a fragmentação da forma, o uso de figuras de linguagem,
são recursos utilizados constantemente nos poemas de Drummond. Isso
se deve ao fato dele incorporar em sua produção elementos da sociedade
que se encontrava desestruturada e em conflito devido aos mandos
e desmandos da elite para atender as exigências do mercado capitalista.
Já
o poema Elegia 1938, serve como exemplaridade do alcance
da visão de Carlos Drummond de Andrade. É, hoje, o símbolo maior
do caráter de permanência da literatura como instrumento de releitura
do mundo.
ELEGIA 1938
- Trabalhas
sem alegria para um mundo caduco,
- onde as formas
e as ações não encerram nenhum exemplo.
- Praticas
laboriosamente os gestos universais,
- sentes calor
e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
- Heróis enchem
os parques da cidade em que te arrastas,
- e preconizam
a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
- Á noite,
se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
- ou se recolhem
aos volumes de sinistras bibliotecas.
- Amas a noite
pelo poder de aniquilamento que encerra
- e sabes
que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
- Mas o terrível
despertar prova a existência da Grande Máquina
- e te repõe,
pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
- Caminhas
entre mortos e com eles conversas
- sobre coisas
do tempo futuro e negócios do espírito.
- A literatura
estragou tuas melhores horas de amor.
- Ao telefone
perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
- Coração orgulhoso,
tens pressa de confessar tua derrota
- e adiar para
outro século a felicidade coletiva.
- Aceitas a
chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
- porque não
podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
A
associação do vocábulo elegia ao ano de 1938 não se dá ocasionalmente.
Drummond, mais uma vez, utiliza-se de grande perspicácia e inteligência.
Elegia era o nome dado pelos gregos a um tipo de poesia cujo
tema estava ligado à morte. Seu tom era, portanto, sempre triste,
de lamentação. O ano de 1938 identifica-se, como se sabe, com um
período de grande desenvolvimento industrial e uma grave crise social
e política, que teria como uma das suas decorrências a Segunda Guerra
Mundial.
Diante
de uma situação de decadência, em que a sociedade perde gradualmente
seus referenciais e trabalha para a construção de um mundo caduco
(v.1), Drummond escreve um poema de crítica e lamento. Em todo o
poema pode-se perceber a crítica à mecanização do homem e à falta
de sentido da vida, cuja responsabilidade o poeta atribui à Grande
Máquina (v.11). Ao empregar a expressão Grande Máquina,
Drummond utiliza-se de uma metáfora para referir-se ao sistema capitalista
que automatiza o homem (v.1) sem resolver os problemas básicos da
existência, como frio e fome (v.4). Para justificar o posicionamento
literário de Drummond, Alfredo Bosi (1994: 441) salienta que a “civilização
que se forma sob os nossos olhos, fortemente amarrada ao neocapitalismo,
à tecnocracia, às ditaduras de toda sorte, ressoou dura e secamente no
eu artístico do último Drummond”.
Já
no primeiro verso do poema, a expressão trabalhas sem alegria
vem evidenciar a mecanização das ações humanas. Essas ações por
serem desprovidas de sentimentos, não guardam nenhum exemplo, não
são, de fato, relevantes (v.2).
O
homem é visto como parte de uma coletividade, pois sua conduta se
restringe apenas à repetição de gestos universais (v.3) e os seus
sentimentos são apresentados de forma banalizada, porque representam
unicamente necessidades existenciais (v.4).
Drummond
utiliza-se de ironia ao colocar lado a lado a imagem dos heróis
que ”preconizam a virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção”
(v.6) e a imagem dos homens que se arrastam pelas cidades, vítimas,
exatamente, dos abusos e atrocidades de tais heróis.
A
noite, diferentemente do que muitas vezes ocorre na poesia de Drummond,
surge aqui como um tempo mais ameno, certamente porque nesse período
é possível esquecer um pouco a violência da vida na sociedade industrial.
Ou seja, ela figura como válvula de escape, como mascaramento da
situação real. Nos versos 9 e 10, observa-se que o poeta lança mão
de um interessante paradoxo, é quando dorme que o homem pode ficar
mais protegido da morte, ameaça constante que a sociedade parece
fabricar a todo momento.
O
contraste entre pequenino e palmeiras (v.12) ilustra
a situação do homem num universo desumanizado. O uso do adjetivo
indecifrávei” aumenta o poder das palmeiras, pois além de
grandes, surgem misteriosas. O que demonstra claramente as conseqüências
do processo de industrialização e do sistema capitalista, que ocasionam
inevitavelmente a separação das classes sociais, a diferença marcante
entre pequenos e grandes, entre fracos e fortes.
Como
parte da engrenagem que move a Grande Máquina ao homem não
resta senão a atitude do conformismo. As expressões caminhas
entre mortos e com eles conversas (v.13) sobre coisas do
tempo futuro e negócios do espírito (v.14) denunciam a incapacidade
de reação dos homens diante da complexidade dos elementos. Sendo
assim só lhes resta ocuparem-se com futilidades (v.15 e 16).
A
submissão às normas ditadas por um mundo caduco faz com que
as tentativas de buscar a felicidade fracassem, o que desperta o
sentimento de revolta e de frustração no homem.
A
Ilha de Manhattan pode ser lida como uma metonímia dessa
sociedade industrial moderna que espalha a guerra, o desemprego
e a injusta distribuição. A exemplaridade do poema se dá
justamente aí. Nota-se a referência clara à cidade de Nova Iorque,
considerada, já naquela época, o grande centro financeiro do mundo,
a grande sede do capitalismo.
A
leitura deste poema, particularmente, demonstra que a poesia de
Drummond permanece sempre atual, na medida em que nos sugere um
questionamento sobre conflitos sociais recentes. O último verso
do poema nos permite refletir sobre a possibilidade de relacionar
o atentado terrorista de 11 de setembro aos Estados Unidos com a
menção da destruição da Ilha de Manhattan feita por Drummond no
poema.
CONCLUSÃO
As
incongruências temáticas e formais presentes nas obras do escritor
itabirano não permitem que seus poemas sejam lidos de maneira linear.
É necessário construir o sentido do texto passo a passo, para que
se possa chegar a uma compreensão do objeto de estudo. Tem-se a
exigência de assumir uma postura ativa frente ao texto. E, com certeza,
saber mais sobre o contexto em que estava inserido o escritor acaba
contribuindo, e muito, na tarefa de compreensão através da atribuição
de sentido. A complexidade de suas obras tem o intuito de instigar
a reflexão por parte dos leitores. Esse parece ser o objetivo maior
de Carlos Drummond de Andrade.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE,
Carlos Drummond de. José/ Novos Poemas/ Fazendeiro do ar.
Rio de Janeiro: Record, 1993.
BOSI, Alfredo. História concisa
da literatura brasileira. 36. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CHAVES, Flávio Loureiro. História
e Literatura. 3. ed. amp. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS,
1999.
IGLESIAS, Francisco. Drummond: história,
política e mineiridade. O Estado de São Paulo. São Paulo.
27 out. 1990.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura.
Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1968.
NOTA
[1]
Aluna do 8º semestre do Curso de Graduação em Letras (UFSM), bolsista
PIBIC/CNPq, participante do Projeto Integrado Literatura e Autoritarismo,
sob orientação da Profa. Dra. Rosani Úrsula Ketzer Umbach.
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