Formalismo
e perda da dimensão humana em A Metamorfose de Franz Kafka
A obra de Franz
Kafka é fortemente marcada por um tratamento especial dispensado
ao material lingüístico, o que lhe valeu ter sido o trecho inicial
de A Metamorfose empregado como modelo exemplar de narrativa
por Umberto Eco em seu ensaio Entrando no bosque (Eco, 1990).
Por outro lado, este traço valeu ao escritor ter sido considerado
formalista (o que equivalia a reacionário) pelos críticos do Realismo
socialista, movimento literário implantado pelos soviéticos na RDA
(Heise & Röhl, 1986: 88).
Ora, o formalismo
de Kafka não o impede de ser um escritor engajado, ou seja, no sentido
adorniano da palavra, um autor compromissado com sua época. Seu
formalismo é, na verdade, o seu realismo, pois, segundo concebe
Adorno (apud Merquior, 1969: 80): “O realista moderno não tem alternativa
senão ser um formalista.” A arte moderna, para Adorno, não corresponde
a um espelho do social “mas sim a um negativo da sociedade” (Idem:
81). Sendo assim, a essência do verdadeiro realismo está na “deformação”
(apud Merquior, 1969: 81). Isso equivale a dizer que ao não apresentar
uma objetividade, no sentido de uma aproximação em relação ao real,
a obra de arte, e em especial a de ficção, logra descortinar o vazio
da existência humana.
A Metamorfoseé
uma obra cujo formalismo (ou realismo, conforme a concepção adorniana)
manifesta-se através da deformação/transformação do protagonista,
Gregor Samsa, em uma barata. Esta deformação/transformação e sua
relação com o caráter formalista da obra serão analisadas no conto
em questão, tendo em vista a contribuição de tais aspectos para
o caráter compromissado deste texto literário. Neste sentido, ressalta-se
a hipótese de que a transformação de Gregor Samsa em barata corresponde
à perda de sua dimensão humana. George Steiner já afirmava em um
de seus ensaios que Kafka retratou a redução do homem a um verme
atormentado e observou no homem a renascença do bestial (Steiner,
1969: 163-164). Este traço pode ser derivado das marcas que o horror
causado pelo nazismo deixara no autor, visto terem sido membros
de sua família exterminados em câmaras de gás e campos de concentração
(Steiner, 1969: 163).
A Metamorfose
é um conto simetricamente dividido em três capítulos: no primeiro,
narra-se a transformação (e as primeiras reações a isso) de Gregor
Samsa em barata; no segundo, a rendição a essa condição; e no terceiro,
o perecimento da personagem.
Essa perda da
dimensão humana é provocada e assegurada por duas instâncias: o
trabalho e a família. No primeiro caso, Gregor Samsa (que era caixeiro
viajante) estava preso, por causa de uma dívida da família, a um
emprego em que o patrão exigia dele que trabalhasse em demasia.
Sua rotina impunha-lhe tal irregularidade, que ficava constantemente
agitado e impossibilitado de criar qualquer vínculo.
Oh,
meu Deus, [...] que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia
sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho
do escritório propriamente dito, e ainda por cima há a maçada de
andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos comboios,
com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais,
que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos. Diabos levem
tudo isto! (KAFKA, 1988: 6)
No segundo caso,
os membros da família, em um primeiro momento, estão entregues a
uma passividade exagerada, deixando que Gregor assuma sozinho a
responsabilidade de sustentar a família; em um segundo momento,
depois que Gregor já está transformado em “barata”, tratam de assegurar
essa condição, afastando-o do convívio familiar, levando-o a ser
completamente ignorado enquanto ser humano e identificado como um
inseto imundo.
“Tenho uma dívida
de lealdade para com o patrão” (KAFKA, 1988: 20). Esta frase resume
o fato de Gregor estar aprisionado ao trabalho. O personagem precisa
viver e agir em função do seu trabalho, o que pode ter relação com
o que Karl Marx denomina reificação: atinge-se tal grau de alienação
que o trabalhador perde sua condição de sujeito para o objeto que
produz. No caso de Samsa, este vê-se alienado não por um objeto
mas pelas condições desumanas do próprio trabalho.
A vida de Gregor
era controlada por aqueles que estavam acima dele no conjunto de recursos
humanos da firma onde trabalhava. Assim, ele submetia-se aos desmandos
do patrão e à pressão do chefe de escritório. Em sua posição de empregado,
Gregor era considerado como um bem qualquer que deveria funcionar
sempre, sem que nada perturbasse o seu rendimento. Tal desempenho
era assegurado pelas pressões sofridas em sua relação com o patrão
e com o chefe de escritório. Isso fica evidente na passagem seguinte:
Senhor
Samsa, [...] que se passa consigo? Para aí barricado no quarto [...]
a negligenciar as suas obrigações profissionais de uma maneira incrível!
Estou a falar em nome dos seus pais e do seu patrão e peço-lhe muito
a sério uma explicação precisa e imediata [...] julgava que o senhor
era uma pessoa sossegada, em que se podia ter confiança, e de repente
parece apostado em fazer uma cena vergonhosa (KAFKA, 1988: 15).
“Além disso,
tenho de olhar pelos meus pais e pela minha irmã” (KAFKA, 1988:
20). Esta frase evidencia a renúncia de Gregor aos interesses próprios
em nome da responsabilidade de sustentar a família. Porém, ao perder
as condições de trabalhador, este personagem é rejeitado como um
estorvo.
O pai, ao perceber
o estado do filho, parece despertar de sua velhice, tornando-se
autoritário e violento, inibindo o que poderia ser uma tentativa
de recuperação do filho. Isso pode ser inferido a partir do seguinte
trecho:
Impiedosamente,
o pai de Gregor obrigava-o a recuar, assobiando e gritando «chô»
como um selvagem. Mas Gregor estava pouco habituado a andar para
trás, o que se revelou um processo lento. Se tivesse uma oportunidade
de virar sobre si mesmo, poderia alcançar imediatamente o quarto,
mas receava exasperar o pai com a lentidão de tal manobra e temia
que a bengala que o pai brandia na mão pudesse desferir-lhe uma
pancada fatal no dorso ou na cabeça (KAFKA, 1988: 23).
O pai torna-se
a figura responsável pelo isolamento do personagem. Este isolamento
de Gregor é o símbolo da perde da liberdade que antes possuía.
A irmã de Gregor,
por seu turno, pode ser considerada o elemento que fornece as condições
necessárias para manter o estado em que a integridade humana deste
personagem se esvai. Pois, ao oferecer-lhe “comida própria de um
insento” (KAFKA, 1988: 28), ela o exclui enquanto membro da família,
tira seu estatuto humano, individual e social, e afirma a sua degeneração
pela negação de seu direito de manifestar vontade própria. Assim,
afirmar a condição de insento de Gregor é torná-lo submisso e fortalecer-se
à custa dessa submissão.
A irmã, ao tirar
a mobília do quarto de Gregor, alegando que ele precisaria de espaço
para movimentar-se, colabora para mantê-lo na condição em que se
encontra. Ela tira tudo que poderia identificar o irmão a um ser
humano, tudo que pudesse levá-lo a recuperar-se através de uma reminiscência.
Por trás de uma máscara de boas intenções, ela o conduzia ao perecimento.
Quando Gregor não mais oferece perigo, ela o abandona.
Aos poucos,
Gregor é privado de suas condições concretas de luta contra a situação
alienante. Porém, sua presença ergue-se como uma bandeira contra
aqueles que querem seu aniquilamento. A presença de Gregor Samsa
incomoda. A força de sua luta está em permanecer na memória. A irmã
é, assim, aquela que tenta tirar de Gregor sua identidade: uma vez
que um homem deixa de reconhecer-se enquanto tal, lutar deixa de
ter sentido. A consciência de Gregor é, porém, a arma que ainda
lhe resta. Ele não pode mais falar. Mas mantém a capacidade de entender
as coisas, discerni-las e revoltar-se contra elas. Por isso, não
come a “comida para barata” que a irmã empurra com o pé para dentro
do quarto.
A mãe de Gregor
parece ser o único membro da família que nutre algum sentimento que
a ligue ao filho, condoendo-se com o seu sofrimento e tentando tomar
a sua defesa. Porém sucumbe passivamente aos argumentos da filha e
convence-se de que não pode interceder pelo filho.
Nem
sequer havia a certeza de que a remoção da mobília lhe prestasse
um serviço [a Gregor]. [A mãe] Tinha a impressão do contrário; a
visão das paredes [...] nuas deprimia-a, e era natural que sucedesse
o mesmo a Gregor, dado que estava habituado à mobília havia muito
tempo e a sua ausência podia fazê-lo sentir-se só (KAFKA, 1988:
37-38).
A voz da mãe é
o único “bem” que dá sentido à vida de Gregor e que desperta nele
a necessidade de refletir sobre sua atual situação. Assim, surge para
Gregor a pergunta:
Quereria,
efectivamente, que o quarto acolhedor, tão confortavelmente equipado
com a velha mobília da família, se transformasse numa caverna nua
onde decerto poderia arrastar-se livremente em todas as direções,
à custa do simultâneo abandono de qualquer reminiscência do seu
passado humano? (KAFKA, 1988: 38).
Vencida pelos
apelos da filha, a mãe ajuda a tirar a mobília do quarto de Gregor
Samsa. Este gesto representa a impotência daqueles que mesmo contra
seus princípios aderem a uma causa injusta. Em determinado momento,
ao perceber que o quarto está quase vazio, Gregor sai do seu esconderijo
tentando salvar uma das únicas coisas em que pode recuperar o sentido
humano de sua vida: o quadro com a figura da mulher envolta em peles
pendurado na parede. Este quadro retrata as aspirações de Gregor
por recuperar sua essência humana, seu trabalho, sua vida social
e a satisfação com a própria vida. Num gesto desesperado, o personagem
pula sobre a moldura e cola-se sobre o vidro como que a proteger
a última coisa que pode salvá-lo (KAFKA, 1988: 40).
Os quadros são
as projeções da dimensão humana de Gregor. Estes funcionam como
espelhos que mantêm a memória/imagem de um Gregor não alienado.
Tais imagens estão associadas à liberdade que o personagem possuía
outrora. Isso se explicita a partir da seguinte passagem:
Mesmo
em frente de Gregor, havia uma fotografia pendurada na parede que
o mostrava fardado de tenente, no tempo em que fizera o serviço
militar, a mão na espada e um sorriso despreocupado na face, que
impunha respeito pelo uniforme e pelo seu porte militar. A porta
que dava para o vestíbulo estava aberta, vendo-se também aberta
a porta de entrada, para além da qual se avistava o terraço de entrada
e os primeiros degraus da escada (KAFKA, 1988: 20).
A integridade
do personagem é associada à liberdade e às várias perspectivas que
para ele se abriam, o que pode ser inferido a partir da associação
do retrato bem composto com uma porta pela qual se avista a porta
de entrada aberta para a rua.
Deste modo,
o drama de Gregor Samsa resulta da perda de sua liberdade pela sujeição
excessiva aos deveres, o que acabou por privá-lo de seus valores
pessoais e humanos.
A
princípio, sempre que ouvia menções à necessidade de ganhar dinheiro,
Gregor afastava-se da porta e deixava-se cair no fresco sofá de
couro [...]. Muitas vezes ali se deixava estar durante a noite,
sem dormir, a esfregar-se no couro durante horas a fio. Quando não
reunia a coragem necessária para se entregar ao violento esforço
de empurrar uma cadeira de braços para junto da janela, trepava
para o peitoril e, arrimando-se à cadeira, encostava-se às vidraças,
certamenente obedecendo à qualquer reminiscência da sensação de
liberdade que sempre experimentara ao ver a janela (KAFKA, 1988:
33-34).
A partir da análise
de A metamorfose, é possível concluir que o distanciamento
em relação ao real encontrado na obra exige justamente uma revisão
do real. Isso ocorre devido à atmosfera de não-normalidade que emerge
das linhas e das entrelinhas da narrativa. Ora, a transformação de
Gregor em um inseto exige que se pense as razões disso e que se pergunte
o que significa ser um inseto. Neste sentido, retoma-se a afirmação
de Adorno: “a deformação é o verdadeiro realismo” (apud Merquior,
1969: 81). Pensando em Kafka, é possível afirmar que o disforme é
a via pela qual se pode entender o real. Assim, se Kafka foi um formalista,
não foi menos realista.
BIBLIOGRAFIA:
ECO,
Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
HEISE,
Eloá & RÖHL, Ruth. História da literatura alemã. Série
Princípios. São Paulo: Ática, 1986.
KAFKA,
Fanz. A metamorfose. Tradução de J. A. Teixeira Aguillar.
Santiago: Publicações Europa América, 1988.
MARX,
Karl & ENGELS, Friedrich. Fetichismo e reificação. In:
Obras completas. MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade
em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio Janeiro: Tempo Brasileiro,
1969.
STEINER,
George. Language and silence. London: Pelican Book, 1969.
[i] Bolsista de Iniciação Científica
do CNPq, participante do Projeto Integrado Literatura e Autoritarismo.
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